sexta-feira, 26 de abril de 2024

crônicas

Um segundo infinito

Cláudio Pimentel

         Pincei a expressão “um segundo infinito” de uma canção que se sobressaia ao alarido de vozes e do som do rádio no carro. Tomei um tombo ao ouvi-la. Foi amor à primeira vista. Tanto que a pequena construção me fez ignorar cantor, música, passageiros e o furioso confronto entre nuvens e ondas do mar na paisagem cinza e chuvosa da manhã, na orla do Jardim de Alá. Miríades de devaneios em torno do tempo e das grandezas que nos acossam assumiram minha mente. Como não estava ao volante, dei asas aos pensamentos. E voei. Que sorte! Até as dores fantasmas deram trégua. A locução, belíssima, foi um bálsamo.

         Quebrado o encanto, desisti de procurar o autor da música. Tenho ligeira desconfiança de que sei quem é, mas escolhi evitar outras ideias que pilhassem minha mente. Pretendia viajar sozinho com a frase, como um ermitão. O tempo me fascina. É invisível. Não palpável. Um fenômeno inventado pelo homem, cujo controle perdeu. Agora tenta retomá-lo. E sua definição não é clara. Os estudiosos dizem que é “um componente de todas as formas de conhecimento humano, de todos os modos de expressão, e está associado às funções da mente”. Puro lero. Define qualquer coisa. Lembra outra invenção humana: Deus. Também fugiu ao controle e tornou-se indefinível.

         A expressão “um segundo infinito” é um quebra cabeça. Como é possível guardar o infinito no segundo? O segundo tem fim, assim como o minuto, a hora e o dia. O infinito, não. Existe. Não teve início e nem terá fim. É meio, apenas. Mas a interpretação está posta: guardar o tempo dentro do tempo. Então, “um segundo infinito” é uma parábola, fadado a interpretações. O segundo, presente na frase, sugere que houve um primeiro e haverá um terceiro, quarto... Vários infinitos infinitamente. O homem se tornaria imortal? O evento seria inesquecível? E o infinito cumpriria seu papel? Coisa para filósofos.

         Ao pé da letra, segundo é um número ordinal, mas permite compreensão que vai além. Em “um segundo infinito” soa como se quiséssemos o segundo (tempo) de forma infinita. Que aquilo de bom que ocorreu num segundo perdurasse uma eternidade. É o desejo dos apaixonados. Todos querem amar infinitamente, assim como também querem viver intensamente seus melhores momentos. O ser humano acredita que a ilusão é uma outra realidade. E fazemos isso porque a realidade nos nega o desejo do infinito. Quer ver? O ódio é finito ou infinito? E o amor, a discórdia e a paz? A chuva que lava tudo não é infinita. Coisa para poetas.

         Quando tomou consciência, o homem deu nomes a tudo. Desenhou a realidade à sua feição. Se bonita ou feia, não sei. Apenas desastrada. Prender o tempo dentro do tempo é uma metáfora à vida. Ao mesmo tempo que prende a ilusão, a realidade dos aedos e trovadores, nos aprisiona à nossa realidade. Encarna o rótulo da liberdade, mas maltrata, escraviza, inferioriza e nos limita. No reino dos dinossauros não existia nomes. Tudo existia sem um porquê. Não se sabia nem onde estavam. Nunca se soube de um Deusnossauro guiando-os. Hoje há quem nomine. Então, teria sido melhor que nos tivessem deixado lá onde também não estávamos. Aqui somos apenas um número.

Qual é o sentido da vida? Fazer um mundo melhor. Não é o que vemos. Habitamos um mundo instável, desatinado, que merece um minuto de silêncio eloquente. A novidade é a Inteligência Artificial (IA), que não vai nos eliminar como a bomba atômica, mas escravizar como em Matrix, cuja principal mensagem, “Conhece a ti mesmo”, dita ao herói “Neo”, merece nossa cuidadosa atenção. Caso contrário, um dia estaremos, como no filme, em úteros industriais fornecendo energia. As escaramuças entre Rússia e Ucrânia, Israel e Irã, EUA e China; e a presença de grupos terroristas de diversos matizes indicam o pior. A presença da IA nos campos de batalhas e a refrega da extrema-direita pelos governos mundiais agravam o cenário. Qualquer bandido pode ser eleito. Há uma nuvem pesada sobre nós. A estupidez e a ignorância são infinitas.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 26.04.2024

sexta-feira, 19 de abril de 2024

crônicas

Um morto muito louco

Cláudio Pimentel

         Sempre gostei de historinhas insólitas. Das que raramente acontecem e envolvem pessoas comuns. Gosto das que subvertem a lógica, revelando o que há de extraordinário no ordinário cotidiano que nos cerca. Elas me encantam. Acontecem há milênios, mas se desvelam apenas num momento fortuito, de pura sorte para quem vê. Quando o acaso permite, trato-as aqui, em minhas crônicas, situando-as em nossa aldeia global, sem me imiscuir no fato, seus motivos e razões. Prefiro investigar a mensagem oculta que guarda e traçar paralelos com a realidade política, econômica e social que vivemos. São ilações. Desconheço os efeitos. Mas se perguntarem: mexem com os sentimentos de alguém? Direi: espero que sim.

São histórias como a do “Bebê Albert”, um dia de idade, encontrado enroladinho numa farda escolar, acomodado numa caixa rosa de sapatos, deixada num ponto de ônibus, como se fosse viajar. Aconteceu em 13 de março de 2013, véspera do aniversário de Salvador, pertinho do Domingo de Ramos. Senti que quem o abandonou, a mãe, acreditava no futuro dele e não mais no futuro dela, cujo abandono jamais foi resolvido. Destino, aliás, de muitos que se encontram nessa babel pobre, suja, violenta e injusta. “Bebês Alberts” são descartados todos os dias enrolados em jornais, nas ruas ou em casa mesmo.

Mudança no destino quem conseguiu foi o rebelde “Boizinho Tobogã”. Uma surpresa que bateu à porta da felicidade em novembro de 2021. Às vésperas de virar churrasco nos diversos rodízios do interior de São Paulo, ele resolveu se refrescar e mudou de vida. O garrote, de dois anos, pulou a cerca de um clube náutico, vizinho à fazenda em que pastava, escalou um toboágua e escorregou até cair na piscina. A ousadia revogou o abate e fez dele um animal de estimação do dono. Quem disse que gado não muda?

A história do Eduardo é educativa e mostra o quão ainda acreditamos em outros mundos, outras vidas, outras dimensões. No enterro do pai, depois de consolar a todos, esperou que saíssem e, já saudoso, permaneceu mais um pouquinho para se consolar com o “velho” de tantas histórias e cumplicidades. Um momento cósmico. E tão intenso que o fez esquecer do horário, ficando preso no cemitério, cujos muros eram mais severos que os da Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Seu azar.

Com a bateria do celular descarregada, num empreendimento sem vigias – aliás, para vigiar quem? –, com portões gigantescos e fechaduras pesadas, sem abertura para fora e de noite, o jeito foi pedir ajuda a quem passasse pela rua. Ele via quem se aproximava, mas estes não viam quem os chamava. Ora se assustavam e corriam, ora afastavam-se rezando ou obsequiosamente em silêncio. Não adiantava dizer que estava vivo e preso por acidente. Recuavam de costas, cabeça baixa, fazendo o sinal da cruz. Para todos, tratava-se de um fantasma em busca de paz.

“Um morto muito louco” (1989) foi uma das muitas comédias norte-americanas que se notabilizaram pelo humor mórbido, escatológico e de gosto duvidoso. Nem todo brasileiro ri. Ou ria. “Todo mundo em pânico”, “Apertem os cintos, o piloto sumiu” ou “Loucademia de Polícia” têm o mesmo DNA. São pastelões diferentes dos nossos, com muitas drogas, bebidas, cigarros e tontices. Porém, a presença nesta semana de uma senhorinha, com feições de quem pertence ao elenco de chanchadas brasileiras, mudou tudo. Adentrar um banco, empurrando o Tio Paulo, morto numa cadeira de rodas, atrás de um empréstimo foi um “must”. E não previsto! O velho pode ter morrido na busca por dinheiro.

Teria sido mais fácil cair no golpe do empréstimo consignado. Nem precisaria de morto. Nem de vivo. Diariamente, dezenas de velhinhos têm suas aposentadorias roubadas com falsos empréstimos consignados, feitos pela negligência dos bancos e de quem devia cuidar deles. É uma indústria que provoca uma dor infinita em quem é roubado, às vezes, por meses, às vezes, para desfazer o mal e restituir as perdas. Aí, sim, a morte é certa: da alma, do ego, da consideração, do respeito, da cidadania, da autoestima. E ninguém consegue impedir. Uma vergonha!

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 19.04.2024

sexta-feira, 12 de abril de 2024

crônicas

Rosa ketchup

Cláudio Pimentel

         A rosa vermelha caiu de bruços no asfalto, atrapalhando o tráfego. Impossível! Nelson ou Chico jamais dariam vida à cena. Mas e daí? O palco estava armado. E a multidão ao redor já assistia outra coisa. O menino de uniforme azul declamou que “o cravo brigou com a rosa e ela apareceu despedaçada”; o fã de “Pulp Fiction” fez graça e filmou que “o filhinho tomate, depois de ouvir papai tomate chamá-lo, atravessou a rua sem olhar e... ketchup”; e a noiva, toda chorosa, soluçou pensando que todos olhavam para ela: “É o meu coração que se partiu por amor.” A confusão só teve fim quando o ensanguentado toureiro se perfilou na sacada do prédio, levantou a bandarilha e ameaçou a todos: “O lenço é meu!” A multidão ensandecida, então, bradou: “Olé!”

         O que houve com a verdade? Virou interpretação? Ou o que queremos acreditar? Quando se relativizou? Em que momento ganhou mais versões? É possível duas verdades em apenas um fato? Para a psicanálise, a verdade fundamental é a verdade do desejo, mas o cotidiano não oferece tal opção. Qual é a verdade fundamental do cotidiano? Fato ou versão? Ou a versão dos fatos? Clichê tão antigo quanto a mentira. É o que enxergamos ou o que pensamos enxergar? Não pode ser o desejo porque esse é algo que foge ao controle. Que está no inconsciente e lá pode permanecer desconhecido por uma vida, se não buscarmos meios de nos conhecer melhor.

         Se para a psicanálise a busca é pela verdade do desejo, algo ao qual poucos se submetem, para a vida cotidiana seria, então, a busca pela verdade da vontade, à qual somos submetidos frente a frente? Teríamos, assim, de um lado, o desejo e suas enigmáticas formas impressionistas e, de outro, a vontade e suas realísticas formas expressionistas? Talvez. Afinal, a maioria das pessoas se encontra aí. Seria, então, o melhor caminho para entender a desmistificação pela qual a verdade passa mundialmente? Hoje, não há nação que não sofra do mal! A verdade é a crise. Maior que a fome. Não basta mais o pão. Verdade só há nas ditaduras e nas autocracias teológicas, tribais e imperiais. Todas mentirosas.

         A verdade do cotidiano nos remete direto aos fatos. Instituições, movimentos sociais, meios de comunicação, internet e ambientes familiar, laboral e comunitário nos alimentam de informações, oferecendo a verdade pronta, porém dissimulada porque é distorcida de acordo com os interesses grupais. Se na psicanálise, o desejo, fruto de nossas experiências emocionais, é o caminho, na vida cotidiana, a vontade é resultado da soma cultura popular, propaganda ideológica e ambientes de convivência educacional, política e social. Em ambos, a verdade torna-se o enigma a ser decifrado. E no enigma, verdade e engano são complementares e não excludentes. O que fazer, então? Ser verdadeiro consigo mesmo, eliminando falsas respostas. É mais fácil enfrentar as verdadeiras questões logo de saída. Vamos por partes, como diria Jack o Estripador.

         A negação da verdade tem me incomodado desde as eleições nos EUA, em 2016, no Brasil, em 2018, e no Brexit, em 2016. A verdade perdeu nas três disputas. E para campanhas mentirosas. Os documentários em torno do assunto – falta o do Brasil – assustam pela ousadia. Apesar de considerados erros históricos, nada os abalou. É fato que ambos os presidentes, norte-americano e brasileiro, não se reelegeram por incompetência de suas administrações, mas isso não é problema. Eles creem que voltam. E graças às mentiras e aos apoiadores poderosos. Elon Musk quer a volta dos dois. Já é patrono do neonazismo. Emparedou o STF, ameaçando não cumprir nossas leis. Postar mentiras favorece os negócios.

         Não bastasse isso, o Brazão, deputado federal investigado por ter mandado matar Marielle Franco, quase foi solto por vossas excelências. O Congresso ficou com pena dele e resolveu se mover para liberá-lo da prisão. Mais de 120 votos pediram sua soltura. Cadê a compostura? Espero que a opção pela mentira os desabone entre os eleitores. Disseram que o crime compensa. No momento em que a criminalidade assombra o país, parlamentares pregam voto de fé num Big Boss de organização criminosa. A verdade está morrendo. E o nosso parlamento, doente. A votação tinha que ser unânime pela prisão. Quem faz opção pelo crime é o quê? “Ei, Al Capone, vê se te emenda!”

Claudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 12 de abril de 2024

sexta-feira, 5 de abril de 2024

crônicas

Que calor se sente aqui

Cláudio Pimentel

         “Que calor! Que desenfreado calor!”, escreveu Machado de Assis ao ensinar um modo fácil de iniciar crônicas, em uma de suas deliciosas crônicas lá pela segunda metade do século XIX, quando ainda não havia efeito estufa, buracos na camada do ozônio, desmatamento da Amazônia ou a terrível e sádica La Ninã. “Use da trivialidade”, sugeria ele, certamente, agitando as pontas do lenço, peça hoje extinta na indumentária de um cavalheiro, cuja extinção também caminha célere rumo ao Inferno, que parece estar aqui, em Salvador, bem pertinho, entre a Valéria e a Palestina, a julgar pela quentura, esta sim desenfreada, que nos assola o corpo no limiar da exígua diplomacia e do farto belicismo do século XXI. Um dos extremismos a nos esquentar a cabeça.

         Em pleno Outono, ao menos na capital dos baianos, como repete o eloquente âncora do jornal, o calor se mantém fiel ao plano de nos fazer suar em bicas e atazanar poros, pele e paciência. Ir à praia virou suicídio coletivo. Nem com protetor solar 500. Abraçar alguém, nem pensar. Só assim para entender a importância dos lenços. Mas pudera, caíram, como tudo nesse país, em desgraça com o advento dos vírus e a descoberta de que seriam seus vetores. Lenços só de papel. Se for de pano, apenas na lapela de vossas excelências em eventos políticos. Ninguém mais põe o nariz em lenços. Põem em outros lugares e... paremos aí, na política e sua pira de invejas, intrigas, perfídias e interesses. Nem precisa do Sol para tisnar os afoitos.

         Machado de Assis não sabe o que é calor, apesar de carioca do Rio 40 graus. O calor hoje é outro. Não basta o Sol. No tempo do escriba, por exemplo, as ruas não eram de asfalto e nem as praças e calçadas de ladrilhos. O chão não absorve a água. Está enterrado como defunto. Culpa dos pobres. Político populista dizia nos anos 1980/90 que pobre gosta de asfalto. Foi um boom. A mania pegou e até hoje comemora-se o asfalto na porta. Resultado: as enchentes tornaram-se o problema. Salvador é assim. Chove cinco minutos e a cidade inunda. De quem é a culpa? O jornal do eloquente âncora só lembra de um dos algozes. Como Machado, prefiro que você, leitor, identifique os outros.

         Eu já residi em três cidades quentes: Rio, Salvador e Maceió. Em todas os problemas são idênticos: cobertura quase total de terrenos, calçadas e ruas. O maior vilão agora são os prédios que sobem vertiginosamente. Em Salvador, as regiões de Piatã, Patamares, Jaguaribe, Pituaçu e Boca do Rio foram tomadas pelo boom imobiliário. Às vezes, tenho a impressão de que o Parque de Pituaçu grita: “Quero ar”. Os prédios formam paredões impedindo a passagem do ventinho marítimo. Além do mais, reúnem toneladas de ferro e vidros espelhados. Um retém calor e  outro o reflete. Isso esquenta. Antigamente, quem ia à praia, ali pelas Ruas da Poesia e da Música, olhava pela linha da orla e via os prédios da Pituba. Hoje não vê. À frente está um novo espelho maciço e gigante.

         Se em sua crônica, Machado se desmanchava em trocadilhos e lembranças sobre a nudez de Adão e o calor no Paraíso, hoje o aumento na temperatura é preocupante. E cresce porque vem acompanhada de outras tragédias: tempestades e nevascas. O clima piorou. O noticiário nos lembra todos os dias. Estamos numa encruzilhada. Para salvar o mundo, o capitalismo vai ter que reduzir o apetite. E o poder da indústria petrolífera, freado. Ambos são duros na queda. Se negam a pagar a conta e serem mexidos. O relógio está contando. Há um prazo. Vamos esperar. De real, apenas um chiste: nas três cidades que vivi, quando o calor exagerava e alguém dizia “que calor sente-se aqui”, sempre havia um gaiato que mirava alguém e repetia “que calor, sente-se aqui.” A vírgula era a única culpada.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 05.04.2024

sexta-feira, 29 de março de 2024

crônicas

Ler para viver num mundo ameaçado

Cláudio Pimentel

         Diante da terrível constatação de que dirigentes da República urdiram, executaram, acobertaram e comemoraram o assassinato da vereadora Marielle Franco, do Rio de Janeiro, só resta botar a viola no saco, sair de fininho e entregar tudo ao inopinável, ao inefável, ao abominável, ao inaceitável. Estamos sós. Assim me sinto. Talvez alguém mais. O professor Eduardo Bueno, o “Peninha”, em “live” pelo Youtube, no canal “Buenas Ideia”, não mediu palavras para irradiar indignação. Porém, poupou palavrões! Não havia clima. Eram pueris perante a gravidade da descoberta. Lembrou que o Rio é, desde o berço, uma academia do crime. E deu o endereço de obras que tratam do assunto. “Está nos livros, mas vocês não leem!”, advertiu.

         São simbólicos os fatos envolvendo a morte da vereadora. Um dos supostos assassinos, o ex-PM Adriano Nóbrega, do Rio, acusado de comandar milícias, foi morto na Bahia em confronto com policiais baianos. Ex-capitão do Bope era investigado pela morte da vereadora, mas as apurações não prosperaram. À Polícia Civil dizia “não se recordar ao certo” onde estava na noite de 14 de março, data em que foi assassinada. Então deputado estadual pelo Rio, Flávio Bolsonaro homenageou Adriano com a Medalha Tiradentes, a mais alta honraria da Assembleia Legislativa fluminense. Que fora! E pior, foi em 2005, quando o cara estava preso, acusado de homicídio. Mãe e mulher do PM trabalharam para Flávio. “Tutti buona gente!”

         O PM Ronnie Lessa, autor da delação premiada à Polícia Federal sobre o caso Marielle, causa perplexidade. Apontado como um dos executores, Ronnie, que também foi homenageado pela Alerj, foi preso em março de 2019, em sua casa, no mesmo condomínio onde Bolsonaro tem casa, o Vivendas Barras. As casas no local variam de R$ 1,5 milhão a R$ 4,5 milhões. Como é possível? Entretanto, o fato mais expressivo da epopeia envolve o ex-deputado federal e ex-PM Daniel Silveira, “anistiado” pelo presidente Bolsonaro depois de condenado à prisão, pelo STJ, por praticar e estimular atos antidemocráticos a instituições e ataques a ministros do Supremo. O que fez de mais revelador foi destruir a placa “Rua Marielle Franco” e exibi-la quebrada com as próprias mãos nas redes sociais. Era o troféu de um crime que se supunha impune.

         Quando eu ando assim meio “down”, costumo recorrer a um amigo, Montaigne. Ou, então, pego no pé de alguma vítima, os EUA. Espécie de “louco beleza” do século XVI, o filósofo francês produziu centenas de ensaios cujo foco não era explicar ou ensinar alguma coisa a alguém, mas apresentar, por meio de suas próprias experiências, modelos de como viver a vida sem temor, sem estresse, sem frescuras. Ele queria saber como viver bem a vida. Portanto, que todos fizessem assim: vivam a vida sem freios, mas sem prejudicar o outro. Caso contrário, que se responsabilize. Juízo é algo que todos devem ter. Enquanto Sócrates fazia perguntas aos outros, Montaigne propunha perguntas a si mesmo. Faça isso e seja sincero.

         Quanto aos EUA, nada contra. Só a leitura que faz do mundo que surpreende. Muito diferente de Brasil e países europeus, mais sábios quando o assunto é alimentação. Com medo de catástrofes, eles agora estão estocando refeições com validade de até 30 anos. Às vésperas da Sexta da Paixão, onde no Brasil muitos passarão fome e outros vão saborear bacalhau, camarão, lagosta e todo tipo de peixe, a novidade americana é uma loucura. As comidas de emergência, como chamam, já fazem parte de suas vidas há décadas, e agora virou trend nas redes sociais. Ganhou até apelido: comidas do fim do mundo. A doidice não é nova. Em 2002, o pão sumiu do cardápio norte-americano. O culpado foi o lobby da carne, considerada a vilã da obesidade, que virou o jogo e colocou o carboidrato no lugar.

         Vendidas geralmente em pó, dentro de baldes, duram 30 anos sem alteração de sabor ou qualidade. São vendidas pela internet e nos supermercados, custando em média 100 dólares. Têm café da manhã, almoço e jantar. Uma loucura. Não consigo imaginar algo parecido entre nós, mas posso dar duas dicas de filmes que podem ajudar nisso: “A última noite” (2021), quando o mundo luta, em meio ao Natal, contra o apocalipse; e “O mundo depois de nós” (2023), quando uma catástrofe ameaça ferrar o feriadão. Sem spoiler. Acreditem nas crianças. Os adultos andam muito xaropes.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 20.03.2024


sexta-feira, 22 de março de 2024

crônicas

Cachorro faz mal à moça

Cláudio Pimentel

         Aprendi lá nos anos 1980, no Curso de Comunicação Social, que o bom jornalista deveria manter distância dos “Fait Divers”. A advertência foi dita pela professora, com gravidade e boa dose de humor, logo nos primeiros dias da faculdade. O nome, em francês, era uma herança da Idade Média, época em que os trovadores populares relatavam em canções os “fait divers”, ou seja, informações sobre assassinatos, traições, roubos, assombrações, nascimentos de xifópagos ou bezerros de duas cabeças. Em suma, tratava do que fosse popularesco, curioso, pueril e não mexesse com a vida daqueles que se deliciavam com as indiscrições. Bastava ter sexo, transgressões e sangue... jorrando, de preferência.

         Com o tipógrafo, inventado por Gutenberg, no século XV, o “fait divers” caiu como luva na imprensa que nascia. Mesmo jovem, seus jornais, ao adotarem o estilo trovador, deram margem a um fenômeno que permanece até hoje: o sensacionalismo. Nos anos 1970/80, os principais jornais com esse perfil, no Rio, eram “O Dia”, de Chagas Freitas, “Tribuna da Imprensa”, de Carlos Lacerda, e “Luta Democrática”, de Tenório Cavalcanti - o “Homem da Capa Preta”. Todos políticos populistas de direita. O “Jornal do Brasil” era o preferido da elite política, econômica e intelectual. O programa “O Povo na TV”, criado pela Tupi, foi o primeiro experimento sensacionalista da telinha. É o espelho de todos os péssimos congêneres que estão por aí.

         Posso dizer que fui leal à velha professora que condenou os “fait divers”, e mantive-me distante dos jornais sensacionalistas, mas confesso que não por vontade própria e, sim, por falta de oportunidades. A carreira ia me empurrando para outras editorias até me jogar de vez para os segmentos da comunicação empresarial e pública, onde permaneci já vão 30 anos. É preciso dizer também que os jornais sensacionalistas estavam perdendo credibilidade. O país, com o fim da ditadura, exigia “seriedade”. E temas como inflação e corrupção pediam soluções. Não havia lugar para “bobagens”.

         Mas enquanto me envolvia em áreas como economia, administração e petroquímica, continuava alimentando o sonho de viver numa redação como a do “Notícias Populares”, de São Paulo, cujo sucesso o transformou no “chupa-cabra do sensacionalismo”. Perdi, porém, o trem do riso. Não rolou. Sonhava em editar suas páginas ou de outros jornais com títulos que mais pertenciam ao ramo do humor, do que ao de imprensa. O “NP” me causava “frouxos de risos”, como dizia o saudável e sorridente “primo rico” (Paulo Gracindo) se referindo a alguma tirada irônica do famélico e melancólico “primo pobre” (Brandão Filho).

         Houve uma experiência na Bahia que merecia estudo, se é que não teve. Trata-se da mudança editorial do Jornal da Bahia que, nos anos 1990, tornou-se sensacionalista. Transformação radical. As edições passaram a ser azuis, com títulos garrafais, fotos espetaculares, sapiência, ironia e sarcasmo em doses exatas. O foco era polícia e costumes. Se houve uma época em que um antigo título “Cachorro faz mal à moça” – um hot dog - me encantou, o Jornal da Bahia logo o superou com os sublimes: “Comeu a galinha da vizinha. E ela morreu”; e “Folião perde a cabeça no Carnaval”. E não foi por causa da orgia momesca, mas porque foi decepada. De novo hoje, palmas ao jornal “Massa”. Cresceu no início, mas solou. Faltou fermento?

         Hoje a imprensa está sensacionalista como nunca. Uma epidemia trágica. Até os veículos de ar vetusto mexem as cadeiras. Porém, por mais que rebolem, desandam. São amarelos. Falta talento, falta humor, sobra sisudez. O sensacionalismo não é mais um filão a explorar, mas sobrevivência, um salve-se quem puder. Quer audiência como o ar. Mórbida e doente, é claro. A TV consegue fazer algo que parecia impossível: nivelar por baixo a expectativa do espectador e agradar. Não está sozinha. Conta com as redes sociais. Elas igualam todos no nível mais raso da compreensão. A rede social não exige instrução. Exige seguidores anencéfalos. Até folião que perde a cabeça assiste. E bate palma.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 22.03.2024


sexta-feira, 15 de março de 2024

crônicas

A França é um país sério. E o Brasil?

Cláudio Pimentel

         Enquanto a França, inspirada, talvez, no Iluminismo que, um dia, guiou a Revolução Francesa, inscreve oficialmente o direito da mulher ao aborto na sua Constituição, o Brasil, inspirado numa provável e febril possessão conservadora, tenta emplacar uma PEC que trata do uso, porte e posse de drogas. O que dizer? Esmero em proteger o cidadão ao vício? Atender interesses dos segmentos que se arvoram a controlar os costumes? Confrontar o aparato judicial que analisa descriminalizá-la? Criar uma cortina de fumaça em ano eleitoral? Ou, então, atrair, num rompante de vaidade, os holofotes para o Congresso? Dois países, dois mundos, duas visões. Uma moderna e outra obscurantista. O que foi que o Brasil não entendeu?

         São dois temas que mexem fundo com os nervos do brasileiro - jamais com a razão. A simples menção é capaz de levar alguns a acusar a França de “assassina”; e o autor, que vos escreve, de fazer apologia às drogas. Erros crassos. Ao pé da letra, a decisão francesa foi aprovada pelo Parlamento, assinada pelo presidente Macron e fez do país o primeiro a tornar a interrupção voluntária da gravidez prevista na Constituição. Era um direito por lei desde 1975 e agora, um direito irreversível. Em um cenário em que a extrema direita renasce raivosa, a novidade, entregue às mulheres no 8 de março, foi um ato de vanguarda.

         Comparar as situações, que flutuam controversas em nossos canais jornalísticos, é sentir a atração do abismo. Como estamos longe de um debate maduro, criativo e sem ressentimentos! Tornar as drogas numa medida constitucional sem descriminalizá-las é esdrúxulo. Se nem a justiça ou os aparatos de segurança conseguem se entender sobre o assunto, por que a iniciativa? O debate precisa ganhar mais horas. Incluí-la na Constituição como cláusula pétrea, então, é um enigma que deveria chamar a atenção de todos os especialistas! Trata-se de um tema vivo, mutante, ao sabor dos tempos. Por que congelá-lo, incluindo-o na Constituição? Beneficia quem? As famélicas e violentas quadrilhas que as vendem nas comunidades? Claro que não. Seria demissão em massa.

         Muitos países passaram a conviver com as drogas, criando mecanismos que, entre outras coisas, a tira do mundo criminal. O Uruguai, que está aqui pertinho de nós, fez isso. Portugal, que nos deu régua e compasso, também descriminalizou as drogas. Os EUA e a Alemanha já percorrem o mesmo caminho. Ninguém morreu. Por que fazer o caminho contrário? São os tubarões que cuidam do atacado da droga e residem nos bairros chiques de São Paulo, Rio e Salvador, que querem? É difícil. Descriminalizar mexe no caixa. Eles querem distância de CNPJs, impostos e concorrência às claras, como existe com cigarros e bebidas. Nem a polícia quer a descriminalização. Retira a justificativa para entrar nas comunidades pisando nas portas.

         A beleza não é compatível com a vida moderna. Ela está cheia de metáforas, encruzilhadas e atalhos. Tanto o aborto quanto as drogas são assuntos explosivos. O mesmo elogio a um pode ser do outro e vice-versa. E sendo assim são presas fáceis para manipuladores. Entendo apenas que as bocas-de-fumo devem ser extintas por falta de uso. Que as crianças não percam aulas e nem seus pais um dia de trabalho por causa de tiroteios. Chega de crianças e mulheres atingidas por balas perdidas. Chega de noticiosos que nos dão bom dia com o sangue escorrendo pela boca. Enquanto não houver regras para o consumo de drogas, não encontraremos a saída do labirinto em que nos encontramos. Que a consciência de nossos legisladores se ilumine. Não é hora de barganhas. Miremos a França.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 15.03.2024

sexta-feira, 8 de março de 2024

crônicas

Ed Mort procura Mandrake na Terra do Sem-Fim

Cláudio Pimentel

         Há um trecho em “Cinema Novo” (1993), canção de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que nos inspira a mergulhar na vida, não apenas na minha ou na sua, mas em qualquer vida do universo: “...as coisas grandes e pequenas, que nos formaram e estão a nos formar”. É o briefing divino para um passeio poético ou filosófico, de viés existencialista, ou então dançante, como quer o samba, em meio à realidade colorida, falastrona, indigente e belicosa a nos envolver. Surgiu durante um sonho em que tentava enxergar, no porão da metrópole, o rosto de Lady Di. Via tudo na tela, menos ela, menos ela. Acordei.

         Após um semestre estudando “tropicalismo”, nos anos 1980, na Faculdade de Comunicação, passei a fazer trabalhos escolares com o viés humorado dos movimentos culturais que passavam pelas salas de aula: Semana de Arte Moderna, Cinema Novo, Bossa Nova... Eu estava encantado com tudo, o que, na prática, não queria dizer inspirado. Os colegas adoravam e me enchiam de entusiasmo, mas não era o que os professores esperavam. Para eles, eu saía do foco e viajava para terras nunca dantes vistas. Uma professora, a que mais amava, me acusou de fazer humor para fugir da realidade. Até hoje não absorvi o que disse. Como não rir diante da realidade que vivíamos e ainda vivemos?

         Cresci ouvindo, de troça, em casa: “é o pai quem você deve seguir”. O pai citado não era o meu, mas Érico Veríssimo, autor de obras inquestionáveis como “Clarissa”, “Incidente em Antares” e “Um certo capitão Rodrigo”. E tudo porque eu dizia, a quem quisesse ouvir, que um dia iria escrever como Luís Fernando Veríssimo. Provocavam: é o Veríssimo errado. “É o pai!” Guardei dele todas as crônicas publicadas na última página da revista Domingo, que vinha encartada no Jornal do Brasil. Eu as lia sempre às 6 horas, assim que abria o armazém de meu pai, onde, além de bebidas, hortifrutis, cereais e carnes, vendíamos também jornais. Ele abria meu domingão com humor.

         Não tenho tudo que LFV escreveu, mas quase tudo que produziu em livros, os quais descansam em área especial em minha iluminada biblioteca: espremido entre os livros de Rubem Fonseca e os de Jorge Amado. Quando não tenho o que fazer, sonho que, daquele canto da estante, um dia sairá, do encontro das três coleções, uma obra-prima de viés inclassificável, mas poder fantástico e espetacular. Ou, então, algo como “Ed Mort procura Mandrake na Terra do Sem-Fim”. Isso tudo me levou a outro gaúcho de humor tão refinado quanto ao de LFV: Mário Quintana, o das historinhas, dos causos e das anedotas. Poeta que seria tranquilamente autor do que Caetano firmou em “Cinema Novo”. Geniais.

         Foi na iluminada biblioteca que revi, recentemente, um livreto que talvez seja difícil de encontrar hoje. “Ora bolas – O humor de Mário Quintana”, de Juarez Fonseca, (2006). O livro contém 130 historinhas contadas por amigos, parentes e conhecidos que assistiram o momento em que foram criadas. Nasceram do cotidiano de Quintana. Ele morreu em 5 de maio de 1994, e neste ano completa 30 anos que se foi. Seu enterro, aliás, teve o aparato oficial esperável com as lágrimas e as declarações de sempre. E teve festa também. Ele manteve a compostura até o fim. Mas nem sempre foi assim.

Numa ocasião, declinou de um quadro que o amigo e pintor Waldeny Elias lhe ofereceu. Era muito grande... Retribuiu com um livro. Na dedicatória explicava-se: “Querido, me desculpe e acredite. Eu não tenho paredes. Só tenho horizontes...” A outro amigo, Silvio Braga, que resolveu seus problemas com o IR, atualizando suas declarações no computador, mandou o seguinte verso: Sei que meu cálculo é infiel; Na mais inglória das lutas; Lido com pena e papel; E tu, ó Braga, computas.

Em um encontro, em 1992, com Caetano Veloso, em Porto Alegre, o artista ouviu de Dulce, uma das anjas de Quintana, que falasse alto, pois o poeta estava surdo. Ele se danou, disse que era mentira. Caetano, então, lembrou que leu na juventude, em Santo Amaro, a tradução dele para “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust, e a impressão que deixou foi fantástica. Mas Mário colocava a mão no ouvido e pedia ajuda: “Hein, o que ele está dizendo; o que ele está dizendo”?

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 08.03.2024

sexta-feira, 1 de março de 2024

crônicas

Cometa Halley

Cláudio Pimentel

         A primeira vez que vi o Cometa Halley foi em 1759. Não sei onde me encontrava, mas lembro, como se fosse hoje, minha inquietude em vê-lo cortando a noite veloz. Sonho em começar algo com a escalafobética visão, particularmente depois que o astrônomo britânico Edmond Halley detalhou, no século XVIII, o caminho que o bólido, como um bumerangue desafiando o Sol, faz pelo universo. A cada 76 anos, passa fulgente pela Terra, como se fosse punido por deuses gregos. A Estrela de Belém era ele, apostam. Sua última passagem por aqui foi em 1986, quando caiu a ditadura brasileira; e a próxima será em 2061, quando farei 101 anos, rijo e atento às suas peripécias no céu. Que viagem!

         O Halley é um milagre a nos lembrar nossa origem: mais complexa do que creem nossos antepassados e seus relatos sobre o altíssimo. Este, seja qual for a crença, sugere o caminho da virtude, mas nós, argutos como jumentos ante uma cenoura, enveredamos incorrigíveis pelos atalhos. Talvez, por isso, o planeta divida seus dias entre cólicas, cefaléias e azias. Os exemplos aparecem e todos padecem. “Não serei juíza de um mundo caduco”, parafraseia Drummond a ministra Cármen Lúcia, do TSE, depois de aprovar regras contra o uso de inteligência artificial nas eleições. As novas tecnologias ensaiam dar um tombo nas próximas eleições. A democracia permanece ameaçada. E o discurso de ódio é latente. A extrema direita não recua.

         As 280 mil pessoas que foram louvar o ex-presidente Bolsonaro, na Avenida Paulista, no domingo, é um desses exemplos. Orientados a vestirem-se de amarelo, não portarem faixas e cartazes e manterem a retidão, eles participaram de um teatro. São soldados prontos a solapar a democracia. A lógica em qualquer manifestação é o livre arbítrio. Não há controle sobre manifestantes. É assim em qualquer lugar do mundo. Mas os bolsonaristas foram finos. Só os canais das letrinhas, JP e CNN, viram normalidade. Porém, nada foi natural ou espontâneo. A obediência se deu porque todos foram contratados para participar da manifestação. Não havia empatia. Havia cachês. Se a ordem fosse quebrar, fariam na Paulista o que fizeram na Praça dos Três Poderes.

         O improviso na manifestação gerou um mico. Bolsonaro pede anistia para os golpistas, o que é uma contradição, afinal os correligionários dele sempre disseram que não havia crime em 8 de janeiro e, portanto, os manifestantes não deveriam ser julgados e nem condenados. Mas o pedido de anistia só vale para criminosos. E a alusão tornou-se uma confissão de crime. E daí? A manifestação foi organizada para uso de suas imagens nas eleições para prefeito em novembro deste ano. Os canais das letrinhas e as redes sociais vão tratar tudo com naturalidade. Exemplos de tempos perigosos.

         Se em 1759 vivíamos os primeiros movimentos da Revolução Francesa, em 1800 começamos a conhecer os bastidores que levaram à Revolução Industrial. Ambos sob Halley. O dramaturgo alemão Schiller, um Shakespeare de nova cepa, lançou a peça “Maria Stuart”, obra-prima do teatro que esclarece o momento mais dramático da realeza britânica: seu futuro. Quem escolher para reinar a Grã Bretanha: a inglesa e protestante Elizabeth I, ou sua prima, a escocesa e católica Maria Stuart? Esta foi executada por ordem de Elizabeth. Tragédia histórica. O apaixonante conflito entre as duas tornou o mundo mais radical. O ar ficou mais pesado. Respirar tornou-se dolorido.

         Tão dolorido quanto assistir o noticiário local da TV. Não há nada tão distante do bom gosto, do lúcido e da prática jornalística. É Rolando Lero puro. O que temos é um circo com seus exageros, suas mulheres barbadas, seus anões, suas aberrações. É assistir e esquecer. Não eleva ninguém.

Dois flashs:

 Homem careca, rico, mal educado, racista, desbocado, destratando todos. Não há informação, apenas o lamento da repórter que o acusa de criminoso porque é criminoso. Era um desabafo, repórter não desabafa, notícia;

- Comentarista elogia mãe que surra o filho “marginal” com um porrete. A imagem é assustadora. Gritos, pancadas nas costas, cabeça e braços. Ela está certa, afirma. Surrar um menor é crime. Elogiar a surra na TV deveria ser também.

         Halley, venha logo, 2061 está muito longe para um cometa tão bonito.

Cláudio Pimentel é jornalista.

Tribuna da Bahia – 01.03.2024

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

crônicas

Um defeito de cor

Cláudio Pimentel

         A atualidade nos mata... aos pouquinhos, como o colesterol. Embriagado pela preguiça, deixei-me, em meio à metáfora das cinzas, abandonado diante da TV, vendo algo que não via há anos: a apuração das escolas de samba do Rio. Tentei fugir, mas fraquejei ao ilusório, ao fortuito. Algo dizia que era a vez da morbidez. Então, me joguei na avenida. Com exceção dos cabelos da peruca do mestre de cerimônias Jorge Perlingeiro, que quase cresceram como os de Sansão, nada mudou. Até as lágrimas de gente poderosa, que aguardava um lugar ao Sol, mantinham as semelhanças de outrora, desfilando, insopitáveis, por bochechas marcadas pela cadência bonita do samba. Ao final, contagens e justificativas chamam a atenção não pelo que mostraram, mas pelo que sugeriram.

         Desfile de escola de samba deve nos fazer sonhar como o cinema. A lógica do passista, que evolui desafiando a gravidade e os espaços, deve ser similar às entrelinhas do enredo e seus aspectos lúdicos. O diferencial é a honestidade da leitura que a escola faz de si. Há as que propõem sofisticação; e outras, o pragmatismo. Existe perda? Não deveria. Do ponto de vista das arquibancadas, o que vale é o espetáculo, o brilho; do ponto de vista dos jurados, é o casamento entre proposta e realização. Equação de difícil compreensão. Porém genuíno, mesmo considerando que sempre exista a suspeita de compra de julgadores. O aparato de segurança para os envelopes de notas, transportados em carro-forte, e a quantidade de julgadores, quatro para cada um dos nove quesitos, emitem sinais trocados.

         O desfile de 2024 teve três escolas com enredos similares, mas avaliações divergentes, considerando-se as notas: a campeã Viradouro, com “Arroboboi Dangbé”, trata da força da mulher negra, ao longo dos séculos, da África ao Brasil. A Vila Isabel com “Gbalá – Viagem ao templo da criação”, aponta, numa narrativa Yorubá, os desvios do mundo, propondo como salvação levar todas as crianças ao Templo da Criação. A Portela, com o enredo “Um defeito de cor”, baseado no livro homônimo, de Ana Maria Gonçalves, propõe uma reflexão sobre a história das negras mães de todos nós, perguntando-se: Por que somos? Por que assim fazemos? Por quem lutamos? Em memória de que?

         A Viradouro ficou em primeiro lugar (270 pontos), a Portela em quinto (268,9) e a Vila Isabel, em sexto (268,8). Houve momentos, durante a apuração, que Portela e Vila Isabel, a cada décimo que perdiam, seriam jogadas nos últimos lugares, apesar de suas apresentações terem sido tão convincentes quanto a da Viradouro, que liderou do início ao fim a contabilização dos pontos. A diferença das notas não mexeu com a curiosidade dos analistas da TV, apesar de se manifestarem o tempo todo sobre a profundidade do tratamento dado ao tema pela Portela e a competência da Vila Isabel, quando tem Martinho da Vila envolvido na sua produção. Ambas foram páreo fácil para o espetáculo de cores, criatividade e engajamento da Viradouro.

As quatro perguntas do enredo da Portela, porém, deveriam, a partir de agora, fazer parte do cotidiano dos brasileiros. São questões que precisam ser respondidas todos os dias. Mais que isso, o livro “Um defeito de cor” deveria ser lido por todos, não só pela sua importância histórica, mas pela qualidade da escrita e capacidade de emocionar. Do meu ponto de vista, a Portela, que ganhou o Estandarte de Ouro, da Rede Globo, como a melhor escola no desfile da Sapucaí, é honrosamente a campeã de 2024. A Viradouro, apesar do belo enredo, ganhou também pela competência estética. Como consolo, o livro, lançado em 2006, e com 952 páginas, alcançou o topo dos mais vendidos da Amazon, depois de escolhido para enredo. Que continue assim. É a história do Brasil ganhando as cores certas. E sem defeitos.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 16.02.2024

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

crônicas

Agonia gostosa

Cláudio Pimentel

         A Internet e as Redes Sociais foram implacáveis com o jornalismo. A principal arma, que era dar a notícia em primeira-mão, esvaziou-se com a capacidade das Mídias Sociais em noticiar em tempo real. A imprensa teve que se reinventar e ainda continua correndo atrás da solução. O jornal impresso, com cada vez menos páginas, colhe os cacos para sobreviver; e a televisão, aos poucos, vai se recompondo, exibindo agora seus telejornais em tempo real. A mudança, porém, demonstra os efeitos colaterais: imprecisão na informação; e a lenta adaptação à divulgação ao vivo. O que era “primeira-mão” passou a ser “atualização”. Os veículos agora correm para atualizar a notícia antes dos outros.

         A adaptação do telejornal, produzido durante décadas em vídeo tape (VT), é dramática. Não há edição, local ou nacional, que não exiba falhas: links que não entram; transmissões que caem; e jornalistas que se perdem por pobreza vocabular e baixa fluência verbal. O teleprompter, equipamento que exibe o texto lido pelo âncora - funciona acoplado às câmeras – tem os dias contados. É tudo para ontem! Nós, sobretudo jornalistas, temos noções dos níveis de usos ou registros do idioma: formal, ultraformal, informal descontraído, informal ultradescontraído, todos presentes nas múltiplas instâncias de nossa comunicação. O uso formal, que disputa espaço com o uso culto, é o ideal, mas não é o que acontece. Hoje até o nível “informal ultradescontraído” se impõe, especialmente no jornalismo policial e local.

         Na cobertura carnavalesca é o nível “informal ultradescontraído” que principia. Não é o ideal, mas o que fazer? Não é pecado, até porque é o ambiente que define o nível. O Carnaval é a expressão mais popular do país, e a forma de se comunicar se estabelece de forma autêntica e sem resistências. Pois foi acreditando nisso, baseado em alguma memória no canto da minha mente, que despertei para pescar o inesperado: a expressão “agonia gostosa”. Destabocou na enxurrada de clichês despejada pela TV num flash do pré-carnaval de Salvador. Fugia à lógica. Pensei: moda nova? Mirei a imagem e conclui: ato falho. Fruto do improviso em grandes eventos. O profissional se desconecta. A imagem era agoniante mesmo: espaço exíguo, dezenas de foliões, câmera do alto, calor, suor, barulho, água empoçada. Eca!

Seria aceita nos círculos do Inferno de Dante. A imagem mexeu com a jornalista, que, ao mencionar “agonia”, percebeu um possível erro – criticar não estava no plano. Freou o ímpeto, respirou fundo e complementou: “gostosa”. Algo prazeroso. E seguiu em frente elogiando o evento, carro chefe da programação da TV, que apostou na alegria da festa. Considerando que agonia é o conjunto de fenômenos mórbidos que anunciam a morte ou que causa ânsia de morte, não ficava bem uma agonia que não fosse gostosa. Foi uma saída honrosa. Freud abrigaria a falha com louvor, oferecendo mais lições sobre os nossos consciente e inconsciente.

Há quem diga ser uma necessidade imediata, mas fazer jornalismo ao vivo é, ao meu ver, o futuro do jornalismo. É o que mais exige do profissional, pois depende da capacidade de apurar, organizar as ideias na mente e discorrer, como um ator. Impossível? Não. Difícil? Sim, mas viável. Li, certa ocasião, que Galvão Bueno era o jornalista para tanto. Lembraram que se os sistemas de uma rádio ou TV caíssem, mas sobrasse apenas um microfone, ele manteria a emissora no ar.

Atuei numa rádio, no Rio, como redator. Tinha 19 anos. Um dos locutores, Manoelito Gomes, de 70, insistia que eu fizesse artigos para ele ler no ar. Tinha uma voz belíssima. Eu desconfiava. O chefe de reportagem disse: “Faça, o velho vai ficar feliz”! Inseguro, tinha dúvidas se escrevia mesmo. Fiz um artigo. Ficou tão bonito na voz dele, que fiz outro e outro e... Um dia, ele não foi. Eu teria que ler. Quase morri. Disse que não, mas não adiantou. Bem, avisei mãe e irmãos e fui ao cadafalso. Ia bem até tropeçar numa palavra, êxodo, que li “exodo”, sem acento. Quando cheguei em casa, a primeira coisa que ouvi: “Senhor “Exodo”, como foi seu dia na rádio?” Era meu irmão.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 09.02.2024

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

crônicas

Jardins alheios

Cláudio Pimentel

Já vi as nuvens dos dois lados. Quem se depara com a frase vai logo perguntar: é impulso filosófico do mundo Marvel ou mais um exercício para causar efeito no leitor? Nenhuma delas. Eu vi: quando estive no chão, olhei para cima e conheci um; quando estava num avião, olhei para baixo e conheci outro. Hoje não sei onde estou, mas sei que eram lados iguais: de algodão doce. Um dos materiais de trabalho de um escritor é seu caderninho de notas, com frases alheias, observações e citações. Desde os dez anos as junto. Se pudesse revê-las, me sentiria o homem mais sortudo do mundo, mas vou ficar devendo. Deixei muitas pelo caminho.

Dia desses, uma caixa na garagem me surpreendeu quando me livrava de tralhas antigas para dar espaço a tralhas fresquinhas. E mesmo não tendo ainda o título de acumulador, resolvi dar uma olhada no que iria me desfazer – quem sabe um tesouro perdido! Deuses das letras ajudaram: achei um caderninho e livros que nem me lembrava mais, afastados por algum “incidente” anterior ou interior. Leitor chato e de ego “inflamado” é assim: tudo é feio quando não é espelho. Além da frase, duas iguarias: um perfil do escritor argentino Bioy Casares e crônicas de Manoel Carlos, criador das Helenas. Não fui fã de suas novelas, mas o livro “A arte de reviver” é ótimo.

Uma das crônicas relembra conversa com o filho, na qual faz um paralelo sobre humor negro e a idade das pessoas. Os jovens o apreciariam mais do que os pais. Com escrita elegante, o uso do “humor negro” no artigo seria resultado de época, pois o livro é de 2000, quando o politicamente correto engatinhava. Eu bani a expressão. Uso “humor ácido” - sem preconceito e precisa. Manoel ilustra a conversa com um episódio envolvendo Alfred Hitchcock. O cineasta estava com amigos num sepultamento quando pergunta a idade a um deles: “Charlie, quantos anos você tem?”; “Oitenta e nove”, responde; e Hitchcock completa: “E acha que vai valer a pena ir embora daqui e voltar para casa?”

O jovem adorou a historinha e a classificou como uma divertidíssima obra-prima do humor ácido. O bate-papo, travado no calçadão do Leblon, no Rio, ainda tocou em outros exemplos, dos quais riram bastante até o menino surpreendê-lo com um caso no cemitério do Araçá, em São Paulo. No túmulo de um apaixonado pela música de Nova Orleans, se lê a inscrição: “Aqui jaz um amante do jazz”. E Manoel encerra: “O humor ácido, como podem ver, não precisa ser, necessariamente, mórbido”. Algo que combina com a elegância do autor. Porém, o mais interessante ainda viria. Manoel publicou duas pequenas pepitas tendo o escritor Bioy Casares e seu livro “De jardins alheios”.

Além de grande escritor, com rica e diversificada obra, Bioy reuniu um material que não cabe em gêneros como romance, teatro ou poesia. Não cabe nem mesmo em um tratado sobre qualquer coisa. Mas, pela genialidade dos casos, sem exageros, caberia em qualquer uma das modalidades. Ao longo da vida, se deu ao trabalho de copiar e guardar versos breves e fragmentos em prosa, que, apesar de absurdos, eram bonitos. Não há ainda tradução para o português e, por isso, Manoel Carlos traduziu alguns trechos. São peças incomparáveis, que nos levam à reflexão, às risadas e ao encanto:

- Cartaz colocado na porta de igreja evangélica em Montevidéu: “Entrem. Grande concentração de milagres”.

- Anúncio num jornal argentino: “Troco meu carro por qualquer veículo que ande”.

- De um velho de 100 anos, ao morrer: “Não sinto nada a não ser uma ligeira dificuldade de seguir vivendo”.

Frase em para-choque de caminhão: “Antes sonhava com você. Agora você não me deixa dormir”.

“Observação de uma senhora argentina: “Atualmente morrem pessoas que nunca morreram”

Aliás, a criatividade argentina para o despautério é infinita: comprei a seguinte placa naquele país: “Se aceptan todo tipo de trastornos”. Está na parede de casa. Minha sogra, quando a viu, fechou os olhos, temeu pela frase e vaticinou: “É convite para malucos”. Disse como se eles já não soubessem o caminho.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 02.02.2024

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

crônicas

Contradições do querer

Cláudio Pimentel

         Todos se queixam da vida, mas todos querem ter vida longa. Uma contradição, não é? Acredito, porém, que seja bem mais que isso. Não é exagero dizer, por exemplo, que hoje qualquer um de nós conhece outra pessoa que se queixa 24 horas. Conte nos dedos a presença delas e se surpreenderá. Eu fiz isso e me surpreendi. Há uma epidemia de chorões que não conseguem dar um passo sem discursar sobre seus infortúnios. Um sem fim de insatisfações que mergulham nos aspectos sociais, como o marido que só pensa em cerveja e a mulher que controla tudo na casa, ou em generalidades, como o chefe que não valoriza o trabalho tanto de um quanto de outro - só tem olhos para os dóceis. São “vítimas”.

         Quando percebo o desperdício, cujo nível de reclamação tornou-se insano com a introdução da política solerte e dolosa, pergunto-me: Será que não há mais espaços para pensar a vida? Hoje, as queixas superam os 40 graus, cuja sensação térmica pode chegar aos 50. Não se fala noutra coisa, que não de clima, no país. Os jornais e telejornais viraram espalhafatosas estações meteorológicas onde o fato não é mais fato, mas os superlativos: incrível, impressionante, surpreendente, extraordinário. Assim exclamam nossos boquiabertos âncoras ou moços e moças do tempo. O clima é o armagedon da hora. E a dor da perda, a cereja do bolo. Há dois tipos de dor: a que nos faz mais forte e a inútil. Somos de uma inutilidade atroz. É o fenômeno reduzido à variedade, num patrocínio do Banco Feliz. Estou derretendo!

         É preciso pensar para viver. Não podemos mais ser conduzidos por ondas movidas pela frivolidade dos meios de comunicação e seus interesses paroquiais. Por que as cidades alagam com as chuvas? Por que as estradas se desmancham com as chuvas? Por que as casas pobres se despedaçam com as chuvas? Por que as pessoas são levadas e mortas pelas chuvas? Que tempestade sem fim! O que fizeram as autoridades públicas ou, então, o que deixaram de fazer? Por que somos inundados com tantas tragédias? Quem vai pagar por isso? Nós as merecemos? Como atores ou como espectadores? Pensar a vida é fazer como Sócrates: perguntar, perguntar e perguntar até encontrar a resposta precisa, a ideia verdadeira, que nos instrua e nos sacie, a mim, a você e à comuna. Para o filósofo, trata-se do princípio de investir em buscar o tesouro e encontrá-lo.

         Não tenho nada contra quem se queixa. Palmas para eles. É preciso reclamar, mas o alvo é a joia de Sócrates: a verdade. Quando vamos à rua, vestimos a melhor roupa. Quando vamos ao restaurante, pedimos o melhor prato. Quando vamos à festa, levamos o melhor presente. Por que, então, quando se trata de ideias, serve a que nos dão e não a que buscamos com desejo? Ninguém me dá dinheiro. Por que, então, não desconfiar de quem nos empurra ideias gratuitas? Por que negligenciar uma boa ideia por outra qualquer? Por que queixar-se do time do coração pela má fase e torná-la um tormento? Fuja da manipulação. Só o político não teme se a esmola é demais. Por que o cotidiano incomoda? Chega de alimentar-se de arrependimentos, frustrações e perdas. Viva a vida. Viva o real.

         A língua portuguesa é bem diferente das outras línguas românicas. Trata-se de um valor caro para nós que falamos o Português. Isso começou na Idade Média, quando a língua, seja qual fosse a origem, era considerada uma “Expressão da Arte”. Os lusos, diante de tão grande desafio, decidiram, então, que fariam da língua portuguesa a mais bela das belas. Algo tão exponencial que sua existência encantaria os Deuses, tornando-a a língua que mais se aproxima do que se cultua como Arte. É a partir dessa ideia que devemos cultivar o desejo de buscar a ideia que também encante os deuses e a verdade que os encantem também. Tem horas que o passado deve nos iluminar. Vai melhorar o presente e inspirar o futuro.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 26.01.2024

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

crônicas

O perfeito quase perfeito

Cláudio Pimentel

         Existe a frase perfeita? O escritor Marcel Proust diria que sim, e apresentaria, como prova, qualquer uma das páginas dos sete volumes que compõem sua obra “Em busca do tempo perdido”, considerado o romance do século XX. A pergunta não é nova e nem as respostas, que se igualam à quantidade de estrelas do céu, mas desde que a escrita permitiu dar, à eternidade, o registro do pensamento do homem, muitos a repetem para si e para o universo. Vivo à sua procura, mas vejo-me distante. Chego a hesitar, como Fausto, diante de um pacto com os demônios para encontrá-la. Alguns acreditam já terem-na concebido, mas faltam-lhes a magia de Proust, um cultor de frases, onde não há pedantismo e tudo flui de modo natural.

         A literatura, o cinema, a propaganda e a política, entre outros nichos, vivem o sonho de produzirem frases perfeitas aos borbotões. Vivem... Lincoln exaltou a democracia atribuindo sua existência ao “poder do povo, para o povo e pelo povo”; Getúlio escreveu em impactante carta uma escolha: “saio da vida para entrar na História”. São pronunciamentos fortes, inesquecíveis, mas que não se encaixam no verbete “frase perfeita”. Elas servem à militância. O que dizer, então, de anúncios como: “O primeiro sutiã a gente nunca esquece” ou “Não esqueça da minha Caloi”? Este último em mensagem ao Papai Noel. São lembrados até hoje graças ao sucesso nas mídias. Também estão fora do verbete. Formam consumidores.

         Existe fórmula para se conceber a frase perfeita? Se existe, está num cofre distante e fechado a quatro chaves. E, se não existe, o que fez Proust emplacar um sem número delas? Em primeiro lugar, talento, que está presente em nós, mas adormecido. É preciso acordá-lo. A frase perfeita é, ao meu ver, usar as palavras como música, equilibrando sonoridade, ritmo e a capacidade de ir além da mera descrição. Cheiro, umidade, acústica, temperatura, luminosidade, cores e até pó devem ser vistos e sentidos na leitura. Devem compor a frase ao ponto de provocar lágrimas, arrepios, esgares, dor, prazer e emoção. A frase perfeita tira-nos da mansidão e nos coloca na ação. A frase que causa tal estupor é a perfeita.

         O século XXI começou negando a perfeição. Vieram as síndromes da crise, da guerra, do consumismo atroz e da pobreza galopante. O planeta está de prontidão com o dedo no gatilho. Virou Babilônia. Para coroar, ao preâmbulo da devastação adentrou o Titã mais perigoso do século: a Inteligência Artificial. Chega com ar de bom moço, mas é a perfeição fake, de um perfeito quase perfeito, que deixa de ser íntima das Artes e passa a dar prestígio à máquina. A IA representa para nós o mesmo que representava a “Skynet” no filme “Exterminador do Futuro”: destruição. A tecnologia que criou deu vida às máquinas e elas decidiram nos eliminar. A IA tem potencial para repetir a façanha: se rebelar contra nós. Aliás, o noticiário já traz exemplos preocupantes, de celebridades negando terem dito o que as redes sociais mostram. São vítimas de inescrupulosos que usam a inteligência artificial para usar suas imagens na defesa de coisas nefastas.

         As maiores vítimas da IA serão os jornalistas. Os jornais, não. Aliás, estão adquirindo os cyber-fantasmas para redigir obituários, clima, notícias do cotidiano. Segundo o linguista, filósofo e sociólogo norte-americano Noam Chomsky, a mente humana não funciona como a IA, que é apenas uma máquina que arquiva bytes e mais bytes de informações para oferecer respostas. Ela não pensa. Ela suga o que já pensamos e repete. Um papagaio do futuro, diria o cantor Alceu Valença. A mente do homem não tem essa capacidade de guardar tanta informação, mas, com a pouca que detém, é capaz de ter os mais sofisticados raciocínios. A IA copia, reescreve e distribui. “É um software de plágio”, diz Chomsky. Artefato sem perfeição, como a bomba de Hiroshima: sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 19.01.2024

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

crônicas

Desejo de conhecer

Cláudio Pimentel

         Ah, Aristóteles! É uma pena que não esteja mais entre nós e um alívio, pelo menos, para você, que um dia declarou: “Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer”. Não é assim. Apesar de verdade, ela vem se desmilinguindo, com a velocidade de uma Ferrari, desde a segunda metade do século passado. Se não for a vida dos outros ou dos ídolos de plantão, nada mais causa curiosidade ao ser humano. Conhecer e pensar em qualquer coisa fora da bisbilhotice das TVs e redes sociais tornaram-se coisas tão chatas quanto esperar um delivery atrasado, ser excluído do home office no emprego ou perder um episódio do BBB.

         Nesta semana, fui comprar o pão e me deparei com algo inusitado. Um dos jornais, estampado ao lado do caixa da Padaria, estava de “bruços” sobre o balcão. Estranhei. Gosto de comparar as manchetes e escolher a melhor do dia. Então, desvirei a pilha de exemplares e, ao ver a capa, desconfiei de censura. O jornal trazia a foto de uma bela mulher em trajes de povo-de-santo e fazia menção à Festa do Bonfim. Alguns evangélicos trabalhavam no local. Será, pensei? Saí e fiquei espreitando de longe. Não deu outra. Uma moça se dirigiu ao local e virou a pilha novamente. Ninguém mandou. Ninguém pediu. Foi voluntário.

         Não é a primeira vez que vejo algo assim. Em outro estabelecimento, na mesma região, ocorreu algo parecido. O proprietário estava no caixa e ouvia o rádio. Aproximei-me e percebi que era uma emissora evangélica e um pastor com boa fluência falava sobre direitos e deveres de um crente. Lembrou que havia na mídia muitas recomendações sobre a importância dos livros, que era um companheiro perfeito e tal. Minhas orelhas se esticaram. Ele não fez menção negativa ao livro, mas foi oblíquo. Disse: “Ler é bom, mas algumas pessoas sentem dificuldade, não gostam, cansam. Deixar de ler um livro não faz mal. O que não podemos é deixar Jesus. Esse, sim, é o companheiro”.

         Há outros exemplos que nem vale a pena citar. Mas eles somados me levam a crer que há um movimento silencioso, no Brasil, buscando negar tudo aquilo que o iluminismo nos trouxe: a valorização da razão em detrimento da fé como forma de entender o mundo e os fenômenos da natureza. Algo que se acentuou no país e ganhou até bancada no Congresso, que é um atraso só. O professor Mangabeira Unger, que dá aulas em Harvard, ao ser entrevistado pelo jornalista Mário Sérgio Conti, na Globo News, falou sobre a importância de o país avançar social e economicamente. Segundo ele, o Brasil se desindustrializou muito rápido, sendo urgente uma retomada, mas não nos moldes que estão aí.

         Unger defende uma reindustrialização que foque na “economia do conhecimento”, que mantém íntima relação com a tecnologia e a ciência. Ele diz que é necessário incluir o contingente de brasileiros que acredita que a solução é o pequeno comércio ou a pequena lavoura e levá-lo a esse patamar moderno. O grupo, que não pertence à burguesia clássica brasileira, mas acredita pertencer, precisa, de acordo com o professor, ser resgatado. É ele que, com a força dos movimentos neo pentecostais e evangélicos, está tentando mudar o rumo do país, mas, infelizmente, para trás, à Era Medieval. E o Brasil tem que escapar dessa armadilha e ir em frente, no mínimo, à Era Espacial.

O engajamento contra a ciência, os acampamentos nos quartéis e os atos golpistas de 8 de janeiro do ano passado são sintomas de que é preciso dar luz a esses grupos e condições para integrá-los numa nova vanguarda. Não só eles, mas todos. Há alguns anos, quando meu filho era pequeno, tivemos que encontrar uma Babá. Como eu e minha mulher saíamos cedo e voltávamos tarde, pouco a víamos, mas pelo telefone tínhamos notícias de que era boazinha, tímida, estranha e que não gostava de televisão. Um belo dia, chego em casa mais cedo e a vejo em pé, na sala, feito um soldado, de costas para a TV, que entretinha meu filho. Era evangélica. Foi um choque!

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 12.01.2024


sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

crônicas

A pergunta que não fiz

Cláudio Pimentel

         Sócrates nada escreveu. O que se sabe sobre ele chegou até nós por meio de escritos de discípulos, como Platão e Xenofonte, entre outros. Em todos, porém, havia algo em comum: ele fazia perguntas. E as fazia de tal forma que, provavelmente, o levaram à morte. O filósofo conduzia as pessoas a buscarem conhecimento por meio de perguntas. Acabou forçado a tomar um chá de Cicuta - planta venenosa – depois de ser condenado por desvirtuar os jovens de Atenas. Um eufemismo à censura que sofreu dos poderosos que habitavam a capital da democracia e temiam até onde essas perguntas iriam induzir a população. Perguntas amedrontam. Perguntar é o devir - vir a ser - da filosofia e da ciência.

         Algumas máximas brincam com o perigo intrínseco numa frase questionadora. Podem ser defensivas, como “Perguntar não ofende”; agressivas como “Crivar de perguntas”; ou desafiadoras como “A pergunta que não quer calar”. Esta, aliás, dá nome ao filme “JFK – A pergunta que não quer calar” (1991), do diretor Oliver Stone, que trata da investigação do assassinato do presidente John Kennedy, na cidade de Dallas, em 22 de novembro de 1963. Até hoje o crime cria polêmica e convive com a suspeita de que escondeu os verdadeiros culpados. No Brasil, desde 14 de março de 2018, pergunta-se “Quem mandou matar Marielle Franco?”, vereadora da cidade do Rio de Janeiro, morta a tiros num atentado no bairro da Lapa. A investigação sofre do mesmo mal de JFK. Falta quem mandou.

         O jornalismo é, talvez, uma das profissões que mais depende da pergunta. Não há jornalismo sem entrevista, assim como não há entrevista sem perguntas. Na raiz de uma reportagem, incluindo as fontes, está a milenar arte de fazer perguntas, assim como Sócrates fazia. Foi na disciplina de Reportagem, na faculdade de comunicação, que comecei a pegar as minúcias do perguntar. O professor, que era diretor de redação de importante revista masculina dos anos 1980, transformou a sala de aula numa redação, dividiu os grupos em editorias – política, economia, cidade, polícia... – e deu como tarefa fazer uma reportagem sobre o bairro de Madureira, cujo comércio, à época, só perdia, em volume de vendas, para o bairro de Copacabana.

         Não me lembro dos prazos, mas recordo que as aulas aconteciam da seguinte forma: cada editoria apresentava ao professor o material obtido, ele orientava o que fazer e dava novas tarefas. Todos assistiam às intervenções dele. Nessas horas, ouvíamos que a melhor entrevista é aquela em que as perguntas são simples e diretas. Não podem ser longas, como se fosse a de um acadêmico exibindo seu conhecimento. Pedia para evitarmos perguntas que estimulam o lugar-comum, mas respostas objetivas, claras e concisas, que facilitariam a redação. Ao contrário dos meus colegas, não precisei fazer entrevistas. Minha tarefa foi levantar os pontos do Jogo do Bicho no bairro, a presença de policiais ao redor, o movimento de apostadores e a forma como o negócio funcionava. Era só observar, conversar e registrar. Tiramos dez.

         Algum tempo depois, vi o bairro de Madureira surgir com todas as suas cores nas páginas da revista do professor. Era diferente do trabalho que fizemos, mas abordava de forma sucinta todos os assuntos que apuramos. Era mais apelativa, tinha um caráter denunciador e mostrava os perigos do bairro. Baseou-se no que fizemos? É difícil dizer. Obviamente, o nosso trabalho chamou a atenção para o bairro. Serviu de pauta. A matéria tinha autoria. Não era cópia. Mas fiquei chateado.

Passaram-se os meses e encontrei o professor apresentando, no auditório da faculdade, a reformulação que fizera na revista, a partir de pesquisa com leitores. Ampliaram o espaço dedicado à cultura, política, economia, moda, saúde, beleza, enfim, coisas que ajudassem o homem a ser mais elegante e melhor informado. Nada falou sobre mulheres nuas, carro chefe da revista. Pensei numa pergunta vingativa. Não a esqueço. “Professor, o que aconteceu com os homens de sua revista? Perderam o interesse pelas mulheres?” Às vezes, acordo assustado com a sensação de que a fiz, mas logo percebo que era um pesadelo. Uau!

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 08.12.2023

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

crônicas

A astúcia tem nomes

Cláudio Pimentel

         Às vésperas do Natal e do Ano Novo, a história se mantém firme na rotina de prestar contas ao respeitável público, sejam boas ou ruins. O Prêmio Nobel da Paz e ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, morreu aos 100 anos. O preciso e cabalístico número, do tamanho de um século, não é à toa. É um capricho do destino para marcar a ferro e fogo um homem de duas encantadoras faces: diplomata genial, que sabia onde as cobras dormiam no mapa geopolítico mundial, e diplomata imoral, que alimentou ditaduras facínoras, pelo planeta, como as do Brasil e Chile. A imagem dele apertando a mão do generalíssimo Pinochet, aos sorrisos, exibida no obituário dos jornais da TV, o maculou de sangue para sempre. Sua morte carimbou 2023.

         Capaz de iluminar os últimos trezentos anos de política das grandes potências, Kissinger é o artífice do que se batizou de “realpolitik” durante a Guerra Fria, um modelo de relações diplomáticas baseadas em questões práticas ou pragmáticas, em detrimento de questões ideológicas ou éticas. A manutenção da segurança do Estado em ambientes hostis, para ele, exigia que os líderes assumissem que o poder e a política de poder devem ser o principal objetivo deles, ou seja, manda o mais forte. Se fôssemos desenhar, seria negociar com o dinheiro em uma mão e um porrete na outra. Ambas capazes de quebrar a mais teimosa resistência. O doutor Strangelove, personagem do filme “Dr. Fantástico” (1964), de Stanley Kubrick, é a cara dele, um admirador da astúcia como arma de convencimento. Kissinger é um personagem shakespeariano.

         Aliás, o Bardo é outra figura que carimbou 2023. Agora, em 8 de novembro, comemorou-se os 400 anos da publicação do “First Folio – Comédias, Histórias & Tragédias”, um cartapácio com a obra de Shakespeare. Foi publicado sete anos após sua morte, em 1616, graças aos companheiros de teatro, que receberam uma herança em dinheiro com um pedido: publicar o que escrevera. Foram impressos entre 750 e mil exemplares, sendo 235 cópias preservadas numa instituição que credenciava e fiscalizava a edição de livros. À época, o “First Folio” foi vendido por uma Libra, valor maior que a soma de 12 meses de salário de um trabalhador inglês. A Christie ’s vendeu, em 2020, um exemplar por US$ 10 milhões. Não tenho dúvidas de que Kissinger se esbaldou com Shakespeare, cujos personagens exalavam astúcia até no mais ínfimo movimento. Sem o “Folio”, pouco saberíamos dele.

         Astúcia é o que não faltou a dois grandes políticos do século passado: os presidentes Getúlio Vargas e Franklin D. Roosevelt. Ambos também carimbaram 2023. Há 80 anos, um encontro entre eles, em Natal (RN), em 28 de janeiro de 1943, selou o futuro da Segunda Guerra. Depois de se encontrar com Churchill, na marroquina, fuxiquenta e sonora Casablanca, de “As Time Goes By”, Roosevelt atravessou o Atlântico para visitar Vargas, num encontro que nem a família do presidente sabia, e fechar a estratégia para derrotar o nazismo. Os EUA precisavam de aeroportos na Costa nordestina brasileira e o Brasil, vencer o atraso industrial. Os EUA tiveram os aeroportos, nos quais desfilaram suas Fortalezas Voadoras, os “B-17”, e o Brasil, a CSN, a Vale do Rio Doce e a Fábrica Nacional de Motores – FNM. O país levantou voo.

         É uma pena que, de positivo, 2023 tenha mais datas a lembrar do que a comemorar. Criamos pouco. Agimos como cachorros perdidos, correndo atrás do próprio rabo sem motivo algum. O século XX foi um desafio, a cada minuto, para quem o vivenciou e enfrentou, mas este quase um quarto de século XXI pouco se diferencia do seu antecessor. De novo: a resiliência vira virtude; e a prepotência também. Tudo errado. A complexidade das relações permanece sem que saibamos quem é o mocinho ou o vilão. Estão aí o Hamas e o Netanyahu! É indispensável a astúcia para identificá-los. Mas quem realmente a tem? Terrorismo, crime organizado, corporações financeiras, mudanças climáticas, inteligência artificial, redes sociais e pandemias alimentam o signo da destruição, de fim do mundo. Bem, a Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia está completando, em 2023, 400 anos também. Vamos orar! Ou seria melhor festejar?

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 01.12.2023