sexta-feira, 5 de abril de 2024

crônicas

Que calor se sente aqui

Cláudio Pimentel

         “Que calor! Que desenfreado calor!”, escreveu Machado de Assis ao ensinar um modo fácil de iniciar crônicas, em uma de suas deliciosas crônicas lá pela segunda metade do século XIX, quando ainda não havia efeito estufa, buracos na camada do ozônio, desmatamento da Amazônia ou a terrível e sádica La Ninã. “Use da trivialidade”, sugeria ele, certamente, agitando as pontas do lenço, peça hoje extinta na indumentária de um cavalheiro, cuja extinção também caminha célere rumo ao Inferno, que parece estar aqui, em Salvador, bem pertinho, entre a Valéria e a Palestina, a julgar pela quentura, esta sim desenfreada, que nos assola o corpo no limiar da exígua diplomacia e do farto belicismo do século XXI. Um dos extremismos a nos esquentar a cabeça.

         Em pleno Outono, ao menos na capital dos baianos, como repete o eloquente âncora do jornal, o calor se mantém fiel ao plano de nos fazer suar em bicas e atazanar poros, pele e paciência. Ir à praia virou suicídio coletivo. Nem com protetor solar 500. Abraçar alguém, nem pensar. Só assim para entender a importância dos lenços. Mas pudera, caíram, como tudo nesse país, em desgraça com o advento dos vírus e a descoberta de que seriam seus vetores. Lenços só de papel. Se for de pano, apenas na lapela de vossas excelências em eventos políticos. Ninguém mais põe o nariz em lenços. Põem em outros lugares e... paremos aí, na política e sua pira de invejas, intrigas, perfídias e interesses. Nem precisa do Sol para tisnar os afoitos.

         Machado de Assis não sabe o que é calor, apesar de carioca do Rio 40 graus. O calor hoje é outro. Não basta o Sol. No tempo do escriba, por exemplo, as ruas não eram de asfalto e nem as praças e calçadas de ladrilhos. O chão não absorve a água. Está enterrado como defunto. Culpa dos pobres. Político populista dizia nos anos 1980/90 que pobre gosta de asfalto. Foi um boom. A mania pegou e até hoje comemora-se o asfalto na porta. Resultado: as enchentes tornaram-se o problema. Salvador é assim. Chove cinco minutos e a cidade inunda. De quem é a culpa? O jornal do eloquente âncora só lembra de um dos algozes. Como Machado, prefiro que você, leitor, identifique os outros.

         Eu já residi em três cidades quentes: Rio, Salvador e Maceió. Em todas os problemas são idênticos: cobertura quase total de terrenos, calçadas e ruas. O maior vilão agora são os prédios que sobem vertiginosamente. Em Salvador, as regiões de Piatã, Patamares, Jaguaribe, Pituaçu e Boca do Rio foram tomadas pelo boom imobiliário. Às vezes, tenho a impressão de que o Parque de Pituaçu grita: “Quero ar”. Os prédios formam paredões impedindo a passagem do ventinho marítimo. Além do mais, reúnem toneladas de ferro e vidros espelhados. Um retém calor e  outro o reflete. Isso esquenta. Antigamente, quem ia à praia, ali pelas Ruas da Poesia e da Música, olhava pela linha da orla e via os prédios da Pituba. Hoje não vê. À frente está um novo espelho maciço e gigante.

         Se em sua crônica, Machado se desmanchava em trocadilhos e lembranças sobre a nudez de Adão e o calor no Paraíso, hoje o aumento na temperatura é preocupante. E cresce porque vem acompanhada de outras tragédias: tempestades e nevascas. O clima piorou. O noticiário nos lembra todos os dias. Estamos numa encruzilhada. Para salvar o mundo, o capitalismo vai ter que reduzir o apetite. E o poder da indústria petrolífera, freado. Ambos são duros na queda. Se negam a pagar a conta e serem mexidos. O relógio está contando. Há um prazo. Vamos esperar. De real, apenas um chiste: nas três cidades que vivi, quando o calor exagerava e alguém dizia “que calor sente-se aqui”, sempre havia um gaiato que mirava alguém e repetia “que calor, sente-se aqui.” A vírgula era a única culpada.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 05.04.2024

Nenhum comentário:

Postar um comentário