sexta-feira, 22 de março de 2024

crônicas

Cachorro faz mal à moça

Cláudio Pimentel

         Aprendi lá nos anos 1980, no Curso de Comunicação Social, que o bom jornalista deveria manter distância dos “Fait Divers”. A advertência foi dita pela professora, com gravidade e boa dose de humor, logo nos primeiros dias da faculdade. O nome, em francês, era uma herança da Idade Média, época em que os trovadores populares relatavam em canções os “fait divers”, ou seja, informações sobre assassinatos, traições, roubos, assombrações, nascimentos de xifópagos ou bezerros de duas cabeças. Em suma, tratava do que fosse popularesco, curioso, pueril e não mexesse com a vida daqueles que se deliciavam com as indiscrições. Bastava ter sexo, transgressões e sangue... jorrando, de preferência.

         Com o tipógrafo, inventado por Gutenberg, no século XV, o “fait divers” caiu como luva na imprensa que nascia. Mesmo jovem, seus jornais, ao adotarem o estilo trovador, deram margem a um fenômeno que permanece até hoje: o sensacionalismo. Nos anos 1970/80, os principais jornais com esse perfil, no Rio, eram “O Dia”, de Chagas Freitas, “Tribuna da Imprensa”, de Carlos Lacerda, e “Luta Democrática”, de Tenório Cavalcanti - o “Homem da Capa Preta”. Todos políticos populistas de direita. O “Jornal do Brasil” era o preferido da elite política, econômica e intelectual. O programa “O Povo na TV”, criado pela Tupi, foi o primeiro experimento sensacionalista da telinha. É o espelho de todos os péssimos congêneres que estão por aí.

         Posso dizer que fui leal à velha professora que condenou os “fait divers”, e mantive-me distante dos jornais sensacionalistas, mas confesso que não por vontade própria e, sim, por falta de oportunidades. A carreira ia me empurrando para outras editorias até me jogar de vez para os segmentos da comunicação empresarial e pública, onde permaneci já vão 30 anos. É preciso dizer também que os jornais sensacionalistas estavam perdendo credibilidade. O país, com o fim da ditadura, exigia “seriedade”. E temas como inflação e corrupção pediam soluções. Não havia lugar para “bobagens”.

         Mas enquanto me envolvia em áreas como economia, administração e petroquímica, continuava alimentando o sonho de viver numa redação como a do “Notícias Populares”, de São Paulo, cujo sucesso o transformou no “chupa-cabra do sensacionalismo”. Perdi, porém, o trem do riso. Não rolou. Sonhava em editar suas páginas ou de outros jornais com títulos que mais pertenciam ao ramo do humor, do que ao de imprensa. O “NP” me causava “frouxos de risos”, como dizia o saudável e sorridente “primo rico” (Paulo Gracindo) se referindo a alguma tirada irônica do famélico e melancólico “primo pobre” (Brandão Filho).

         Houve uma experiência na Bahia que merecia estudo, se é que não teve. Trata-se da mudança editorial do Jornal da Bahia que, nos anos 1990, tornou-se sensacionalista. Transformação radical. As edições passaram a ser azuis, com títulos garrafais, fotos espetaculares, sapiência, ironia e sarcasmo em doses exatas. O foco era polícia e costumes. Se houve uma época em que um antigo título “Cachorro faz mal à moça” – um hot dog - me encantou, o Jornal da Bahia logo o superou com os sublimes: “Comeu a galinha da vizinha. E ela morreu”; e “Folião perde a cabeça no Carnaval”. E não foi por causa da orgia momesca, mas porque foi decepada. De novo hoje, palmas ao jornal “Massa”. Cresceu no início, mas solou. Faltou fermento?

         Hoje a imprensa está sensacionalista como nunca. Uma epidemia trágica. Até os veículos de ar vetusto mexem as cadeiras. Porém, por mais que rebolem, desandam. São amarelos. Falta talento, falta humor, sobra sisudez. O sensacionalismo não é mais um filão a explorar, mas sobrevivência, um salve-se quem puder. Quer audiência como o ar. Mórbida e doente, é claro. A TV consegue fazer algo que parecia impossível: nivelar por baixo a expectativa do espectador e agradar. Não está sozinha. Conta com as redes sociais. Elas igualam todos no nível mais raso da compreensão. A rede social não exige instrução. Exige seguidores anencéfalos. Até folião que perde a cabeça assiste. E bate palma.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 22.03.2024


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