sexta-feira, 1 de março de 2024

crônicas

Cometa Halley

Cláudio Pimentel

         A primeira vez que vi o Cometa Halley foi em 1759. Não sei onde me encontrava, mas lembro, como se fosse hoje, minha inquietude em vê-lo cortando a noite veloz. Sonho em começar algo com a escalafobética visão, particularmente depois que o astrônomo britânico Edmond Halley detalhou, no século XVIII, o caminho que o bólido, como um bumerangue desafiando o Sol, faz pelo universo. A cada 76 anos, passa fulgente pela Terra, como se fosse punido por deuses gregos. A Estrela de Belém era ele, apostam. Sua última passagem por aqui foi em 1986, quando caiu a ditadura brasileira; e a próxima será em 2061, quando farei 101 anos, rijo e atento às suas peripécias no céu. Que viagem!

         O Halley é um milagre a nos lembrar nossa origem: mais complexa do que creem nossos antepassados e seus relatos sobre o altíssimo. Este, seja qual for a crença, sugere o caminho da virtude, mas nós, argutos como jumentos ante uma cenoura, enveredamos incorrigíveis pelos atalhos. Talvez, por isso, o planeta divida seus dias entre cólicas, cefaléias e azias. Os exemplos aparecem e todos padecem. “Não serei juíza de um mundo caduco”, parafraseia Drummond a ministra Cármen Lúcia, do TSE, depois de aprovar regras contra o uso de inteligência artificial nas eleições. As novas tecnologias ensaiam dar um tombo nas próximas eleições. A democracia permanece ameaçada. E o discurso de ódio é latente. A extrema direita não recua.

         As 280 mil pessoas que foram louvar o ex-presidente Bolsonaro, na Avenida Paulista, no domingo, é um desses exemplos. Orientados a vestirem-se de amarelo, não portarem faixas e cartazes e manterem a retidão, eles participaram de um teatro. São soldados prontos a solapar a democracia. A lógica em qualquer manifestação é o livre arbítrio. Não há controle sobre manifestantes. É assim em qualquer lugar do mundo. Mas os bolsonaristas foram finos. Só os canais das letrinhas, JP e CNN, viram normalidade. Porém, nada foi natural ou espontâneo. A obediência se deu porque todos foram contratados para participar da manifestação. Não havia empatia. Havia cachês. Se a ordem fosse quebrar, fariam na Paulista o que fizeram na Praça dos Três Poderes.

         O improviso na manifestação gerou um mico. Bolsonaro pede anistia para os golpistas, o que é uma contradição, afinal os correligionários dele sempre disseram que não havia crime em 8 de janeiro e, portanto, os manifestantes não deveriam ser julgados e nem condenados. Mas o pedido de anistia só vale para criminosos. E a alusão tornou-se uma confissão de crime. E daí? A manifestação foi organizada para uso de suas imagens nas eleições para prefeito em novembro deste ano. Os canais das letrinhas e as redes sociais vão tratar tudo com naturalidade. Exemplos de tempos perigosos.

         Se em 1759 vivíamos os primeiros movimentos da Revolução Francesa, em 1800 começamos a conhecer os bastidores que levaram à Revolução Industrial. Ambos sob Halley. O dramaturgo alemão Schiller, um Shakespeare de nova cepa, lançou a peça “Maria Stuart”, obra-prima do teatro que esclarece o momento mais dramático da realeza britânica: seu futuro. Quem escolher para reinar a Grã Bretanha: a inglesa e protestante Elizabeth I, ou sua prima, a escocesa e católica Maria Stuart? Esta foi executada por ordem de Elizabeth. Tragédia histórica. O apaixonante conflito entre as duas tornou o mundo mais radical. O ar ficou mais pesado. Respirar tornou-se dolorido.

         Tão dolorido quanto assistir o noticiário local da TV. Não há nada tão distante do bom gosto, do lúcido e da prática jornalística. É Rolando Lero puro. O que temos é um circo com seus exageros, suas mulheres barbadas, seus anões, suas aberrações. É assistir e esquecer. Não eleva ninguém.

Dois flashs:

 Homem careca, rico, mal educado, racista, desbocado, destratando todos. Não há informação, apenas o lamento da repórter que o acusa de criminoso porque é criminoso. Era um desabafo, repórter não desabafa, notícia;

- Comentarista elogia mãe que surra o filho “marginal” com um porrete. A imagem é assustadora. Gritos, pancadas nas costas, cabeça e braços. Ela está certa, afirma. Surrar um menor é crime. Elogiar a surra na TV deveria ser também.

         Halley, venha logo, 2061 está muito longe para um cometa tão bonito.

Cláudio Pimentel é jornalista.

Tribuna da Bahia – 01.03.2024

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