sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

crônicas

A astúcia tem nomes

Cláudio Pimentel

         Às vésperas do Natal e do Ano Novo, a história se mantém firme na rotina de prestar contas ao respeitável público, sejam boas ou ruins. O Prêmio Nobel da Paz e ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, morreu aos 100 anos. O preciso e cabalístico número, do tamanho de um século, não é à toa. É um capricho do destino para marcar a ferro e fogo um homem de duas encantadoras faces: diplomata genial, que sabia onde as cobras dormiam no mapa geopolítico mundial, e diplomata imoral, que alimentou ditaduras facínoras, pelo planeta, como as do Brasil e Chile. A imagem dele apertando a mão do generalíssimo Pinochet, aos sorrisos, exibida no obituário dos jornais da TV, o maculou de sangue para sempre. Sua morte carimbou 2023.

         Capaz de iluminar os últimos trezentos anos de política das grandes potências, Kissinger é o artífice do que se batizou de “realpolitik” durante a Guerra Fria, um modelo de relações diplomáticas baseadas em questões práticas ou pragmáticas, em detrimento de questões ideológicas ou éticas. A manutenção da segurança do Estado em ambientes hostis, para ele, exigia que os líderes assumissem que o poder e a política de poder devem ser o principal objetivo deles, ou seja, manda o mais forte. Se fôssemos desenhar, seria negociar com o dinheiro em uma mão e um porrete na outra. Ambas capazes de quebrar a mais teimosa resistência. O doutor Strangelove, personagem do filme “Dr. Fantástico” (1964), de Stanley Kubrick, é a cara dele, um admirador da astúcia como arma de convencimento. Kissinger é um personagem shakespeariano.

         Aliás, o Bardo é outra figura que carimbou 2023. Agora, em 8 de novembro, comemorou-se os 400 anos da publicação do “First Folio – Comédias, Histórias & Tragédias”, um cartapácio com a obra de Shakespeare. Foi publicado sete anos após sua morte, em 1616, graças aos companheiros de teatro, que receberam uma herança em dinheiro com um pedido: publicar o que escrevera. Foram impressos entre 750 e mil exemplares, sendo 235 cópias preservadas numa instituição que credenciava e fiscalizava a edição de livros. À época, o “First Folio” foi vendido por uma Libra, valor maior que a soma de 12 meses de salário de um trabalhador inglês. A Christie ’s vendeu, em 2020, um exemplar por US$ 10 milhões. Não tenho dúvidas de que Kissinger se esbaldou com Shakespeare, cujos personagens exalavam astúcia até no mais ínfimo movimento. Sem o “Folio”, pouco saberíamos dele.

         Astúcia é o que não faltou a dois grandes políticos do século passado: os presidentes Getúlio Vargas e Franklin D. Roosevelt. Ambos também carimbaram 2023. Há 80 anos, um encontro entre eles, em Natal (RN), em 28 de janeiro de 1943, selou o futuro da Segunda Guerra. Depois de se encontrar com Churchill, na marroquina, fuxiquenta e sonora Casablanca, de “As Time Goes By”, Roosevelt atravessou o Atlântico para visitar Vargas, num encontro que nem a família do presidente sabia, e fechar a estratégia para derrotar o nazismo. Os EUA precisavam de aeroportos na Costa nordestina brasileira e o Brasil, vencer o atraso industrial. Os EUA tiveram os aeroportos, nos quais desfilaram suas Fortalezas Voadoras, os “B-17”, e o Brasil, a CSN, a Vale do Rio Doce e a Fábrica Nacional de Motores – FNM. O país levantou voo.

         É uma pena que, de positivo, 2023 tenha mais datas a lembrar do que a comemorar. Criamos pouco. Agimos como cachorros perdidos, correndo atrás do próprio rabo sem motivo algum. O século XX foi um desafio, a cada minuto, para quem o vivenciou e enfrentou, mas este quase um quarto de século XXI pouco se diferencia do seu antecessor. De novo: a resiliência vira virtude; e a prepotência também. Tudo errado. A complexidade das relações permanece sem que saibamos quem é o mocinho ou o vilão. Estão aí o Hamas e o Netanyahu! É indispensável a astúcia para identificá-los. Mas quem realmente a tem? Terrorismo, crime organizado, corporações financeiras, mudanças climáticas, inteligência artificial, redes sociais e pandemias alimentam o signo da destruição, de fim do mundo. Bem, a Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia está completando, em 2023, 400 anos também. Vamos orar! Ou seria melhor festejar?

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 01.12.2023

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