sexta-feira, 12 de abril de 2024

crônicas

Rosa ketchup

Cláudio Pimentel

         A rosa vermelha caiu de bruços no asfalto, atrapalhando o tráfego. Impossível! Nelson ou Chico jamais dariam vida à cena. Mas e daí? O palco estava armado. E a multidão ao redor já assistia outra coisa. O menino de uniforme azul declamou que “o cravo brigou com a rosa e ela apareceu despedaçada”; o fã de “Pulp Fiction” fez graça e filmou que “o filhinho tomate, depois de ouvir papai tomate chamá-lo, atravessou a rua sem olhar e... ketchup”; e a noiva, toda chorosa, soluçou pensando que todos olhavam para ela: “É o meu coração que se partiu por amor.” A confusão só teve fim quando o ensanguentado toureiro se perfilou na sacada do prédio, levantou a bandarilha e ameaçou a todos: “O lenço é meu!” A multidão ensandecida, então, bradou: “Olé!”

         O que houve com a verdade? Virou interpretação? Ou o que queremos acreditar? Quando se relativizou? Em que momento ganhou mais versões? É possível duas verdades em apenas um fato? Para a psicanálise, a verdade fundamental é a verdade do desejo, mas o cotidiano não oferece tal opção. Qual é a verdade fundamental do cotidiano? Fato ou versão? Ou a versão dos fatos? Clichê tão antigo quanto a mentira. É o que enxergamos ou o que pensamos enxergar? Não pode ser o desejo porque esse é algo que foge ao controle. Que está no inconsciente e lá pode permanecer desconhecido por uma vida, se não buscarmos meios de nos conhecer melhor.

         Se para a psicanálise a busca é pela verdade do desejo, algo ao qual poucos se submetem, para a vida cotidiana seria, então, a busca pela verdade da vontade, à qual somos submetidos frente a frente? Teríamos, assim, de um lado, o desejo e suas enigmáticas formas impressionistas e, de outro, a vontade e suas realísticas formas expressionistas? Talvez. Afinal, a maioria das pessoas se encontra aí. Seria, então, o melhor caminho para entender a desmistificação pela qual a verdade passa mundialmente? Hoje, não há nação que não sofra do mal! A verdade é a crise. Maior que a fome. Não basta mais o pão. Verdade só há nas ditaduras e nas autocracias teológicas, tribais e imperiais. Todas mentirosas.

         A verdade do cotidiano nos remete direto aos fatos. Instituições, movimentos sociais, meios de comunicação, internet e ambientes familiar, laboral e comunitário nos alimentam de informações, oferecendo a verdade pronta, porém dissimulada porque é distorcida de acordo com os interesses grupais. Se na psicanálise, o desejo, fruto de nossas experiências emocionais, é o caminho, na vida cotidiana, a vontade é resultado da soma cultura popular, propaganda ideológica e ambientes de convivência educacional, política e social. Em ambos, a verdade torna-se o enigma a ser decifrado. E no enigma, verdade e engano são complementares e não excludentes. O que fazer, então? Ser verdadeiro consigo mesmo, eliminando falsas respostas. É mais fácil enfrentar as verdadeiras questões logo de saída. Vamos por partes, como diria Jack o Estripador.

         A negação da verdade tem me incomodado desde as eleições nos EUA, em 2016, no Brasil, em 2018, e no Brexit, em 2016. A verdade perdeu nas três disputas. E para campanhas mentirosas. Os documentários em torno do assunto – falta o do Brasil – assustam pela ousadia. Apesar de considerados erros históricos, nada os abalou. É fato que ambos os presidentes, norte-americano e brasileiro, não se reelegeram por incompetência de suas administrações, mas isso não é problema. Eles creem que voltam. E graças às mentiras e aos apoiadores poderosos. Elon Musk quer a volta dos dois. Já é patrono do neonazismo. Emparedou o STF, ameaçando não cumprir nossas leis. Postar mentiras favorece os negócios.

         Não bastasse isso, o Brazão, deputado federal investigado por ter mandado matar Marielle Franco, quase foi solto por vossas excelências. O Congresso ficou com pena dele e resolveu se mover para liberá-lo da prisão. Mais de 120 votos pediram sua soltura. Cadê a compostura? Espero que a opção pela mentira os desabone entre os eleitores. Disseram que o crime compensa. No momento em que a criminalidade assombra o país, parlamentares pregam voto de fé num Big Boss de organização criminosa. A verdade está morrendo. E o nosso parlamento, doente. A votação tinha que ser unânime pela prisão. Quem faz opção pelo crime é o quê? “Ei, Al Capone, vê se te emenda!”

Claudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 12 de abril de 2024

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