sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

crônicas

O perfeito quase perfeito

Cláudio Pimentel

         Existe a frase perfeita? O escritor Marcel Proust diria que sim, e apresentaria, como prova, qualquer uma das páginas dos sete volumes que compõem sua obra “Em busca do tempo perdido”, considerado o romance do século XX. A pergunta não é nova e nem as respostas, que se igualam à quantidade de estrelas do céu, mas desde que a escrita permitiu dar, à eternidade, o registro do pensamento do homem, muitos a repetem para si e para o universo. Vivo à sua procura, mas vejo-me distante. Chego a hesitar, como Fausto, diante de um pacto com os demônios para encontrá-la. Alguns acreditam já terem-na concebido, mas faltam-lhes a magia de Proust, um cultor de frases, onde não há pedantismo e tudo flui de modo natural.

         A literatura, o cinema, a propaganda e a política, entre outros nichos, vivem o sonho de produzirem frases perfeitas aos borbotões. Vivem... Lincoln exaltou a democracia atribuindo sua existência ao “poder do povo, para o povo e pelo povo”; Getúlio escreveu em impactante carta uma escolha: “saio da vida para entrar na História”. São pronunciamentos fortes, inesquecíveis, mas que não se encaixam no verbete “frase perfeita”. Elas servem à militância. O que dizer, então, de anúncios como: “O primeiro sutiã a gente nunca esquece” ou “Não esqueça da minha Caloi”? Este último em mensagem ao Papai Noel. São lembrados até hoje graças ao sucesso nas mídias. Também estão fora do verbete. Formam consumidores.

         Existe fórmula para se conceber a frase perfeita? Se existe, está num cofre distante e fechado a quatro chaves. E, se não existe, o que fez Proust emplacar um sem número delas? Em primeiro lugar, talento, que está presente em nós, mas adormecido. É preciso acordá-lo. A frase perfeita é, ao meu ver, usar as palavras como música, equilibrando sonoridade, ritmo e a capacidade de ir além da mera descrição. Cheiro, umidade, acústica, temperatura, luminosidade, cores e até pó devem ser vistos e sentidos na leitura. Devem compor a frase ao ponto de provocar lágrimas, arrepios, esgares, dor, prazer e emoção. A frase perfeita tira-nos da mansidão e nos coloca na ação. A frase que causa tal estupor é a perfeita.

         O século XXI começou negando a perfeição. Vieram as síndromes da crise, da guerra, do consumismo atroz e da pobreza galopante. O planeta está de prontidão com o dedo no gatilho. Virou Babilônia. Para coroar, ao preâmbulo da devastação adentrou o Titã mais perigoso do século: a Inteligência Artificial. Chega com ar de bom moço, mas é a perfeição fake, de um perfeito quase perfeito, que deixa de ser íntima das Artes e passa a dar prestígio à máquina. A IA representa para nós o mesmo que representava a “Skynet” no filme “Exterminador do Futuro”: destruição. A tecnologia que criou deu vida às máquinas e elas decidiram nos eliminar. A IA tem potencial para repetir a façanha: se rebelar contra nós. Aliás, o noticiário já traz exemplos preocupantes, de celebridades negando terem dito o que as redes sociais mostram. São vítimas de inescrupulosos que usam a inteligência artificial para usar suas imagens na defesa de coisas nefastas.

         As maiores vítimas da IA serão os jornalistas. Os jornais, não. Aliás, estão adquirindo os cyber-fantasmas para redigir obituários, clima, notícias do cotidiano. Segundo o linguista, filósofo e sociólogo norte-americano Noam Chomsky, a mente humana não funciona como a IA, que é apenas uma máquina que arquiva bytes e mais bytes de informações para oferecer respostas. Ela não pensa. Ela suga o que já pensamos e repete. Um papagaio do futuro, diria o cantor Alceu Valença. A mente do homem não tem essa capacidade de guardar tanta informação, mas, com a pouca que detém, é capaz de ter os mais sofisticados raciocínios. A IA copia, reescreve e distribui. “É um software de plágio”, diz Chomsky. Artefato sem perfeição, como a bomba de Hiroshima: sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 19.01.2024

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