sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

crônicas

Jardins alheios

Cláudio Pimentel

Já vi as nuvens dos dois lados. Quem se depara com a frase vai logo perguntar: é impulso filosófico do mundo Marvel ou mais um exercício para causar efeito no leitor? Nenhuma delas. Eu vi: quando estive no chão, olhei para cima e conheci um; quando estava num avião, olhei para baixo e conheci outro. Hoje não sei onde estou, mas sei que eram lados iguais: de algodão doce. Um dos materiais de trabalho de um escritor é seu caderninho de notas, com frases alheias, observações e citações. Desde os dez anos as junto. Se pudesse revê-las, me sentiria o homem mais sortudo do mundo, mas vou ficar devendo. Deixei muitas pelo caminho.

Dia desses, uma caixa na garagem me surpreendeu quando me livrava de tralhas antigas para dar espaço a tralhas fresquinhas. E mesmo não tendo ainda o título de acumulador, resolvi dar uma olhada no que iria me desfazer – quem sabe um tesouro perdido! Deuses das letras ajudaram: achei um caderninho e livros que nem me lembrava mais, afastados por algum “incidente” anterior ou interior. Leitor chato e de ego “inflamado” é assim: tudo é feio quando não é espelho. Além da frase, duas iguarias: um perfil do escritor argentino Bioy Casares e crônicas de Manoel Carlos, criador das Helenas. Não fui fã de suas novelas, mas o livro “A arte de reviver” é ótimo.

Uma das crônicas relembra conversa com o filho, na qual faz um paralelo sobre humor negro e a idade das pessoas. Os jovens o apreciariam mais do que os pais. Com escrita elegante, o uso do “humor negro” no artigo seria resultado de época, pois o livro é de 2000, quando o politicamente correto engatinhava. Eu bani a expressão. Uso “humor ácido” - sem preconceito e precisa. Manoel ilustra a conversa com um episódio envolvendo Alfred Hitchcock. O cineasta estava com amigos num sepultamento quando pergunta a idade a um deles: “Charlie, quantos anos você tem?”; “Oitenta e nove”, responde; e Hitchcock completa: “E acha que vai valer a pena ir embora daqui e voltar para casa?”

O jovem adorou a historinha e a classificou como uma divertidíssima obra-prima do humor ácido. O bate-papo, travado no calçadão do Leblon, no Rio, ainda tocou em outros exemplos, dos quais riram bastante até o menino surpreendê-lo com um caso no cemitério do Araçá, em São Paulo. No túmulo de um apaixonado pela música de Nova Orleans, se lê a inscrição: “Aqui jaz um amante do jazz”. E Manoel encerra: “O humor ácido, como podem ver, não precisa ser, necessariamente, mórbido”. Algo que combina com a elegância do autor. Porém, o mais interessante ainda viria. Manoel publicou duas pequenas pepitas tendo o escritor Bioy Casares e seu livro “De jardins alheios”.

Além de grande escritor, com rica e diversificada obra, Bioy reuniu um material que não cabe em gêneros como romance, teatro ou poesia. Não cabe nem mesmo em um tratado sobre qualquer coisa. Mas, pela genialidade dos casos, sem exageros, caberia em qualquer uma das modalidades. Ao longo da vida, se deu ao trabalho de copiar e guardar versos breves e fragmentos em prosa, que, apesar de absurdos, eram bonitos. Não há ainda tradução para o português e, por isso, Manoel Carlos traduziu alguns trechos. São peças incomparáveis, que nos levam à reflexão, às risadas e ao encanto:

- Cartaz colocado na porta de igreja evangélica em Montevidéu: “Entrem. Grande concentração de milagres”.

- Anúncio num jornal argentino: “Troco meu carro por qualquer veículo que ande”.

- De um velho de 100 anos, ao morrer: “Não sinto nada a não ser uma ligeira dificuldade de seguir vivendo”.

Frase em para-choque de caminhão: “Antes sonhava com você. Agora você não me deixa dormir”.

“Observação de uma senhora argentina: “Atualmente morrem pessoas que nunca morreram”

Aliás, a criatividade argentina para o despautério é infinita: comprei a seguinte placa naquele país: “Se aceptan todo tipo de trastornos”. Está na parede de casa. Minha sogra, quando a viu, fechou os olhos, temeu pela frase e vaticinou: “É convite para malucos”. Disse como se eles já não soubessem o caminho.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 02.02.2024

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