sexta-feira, 19 de abril de 2024

crônicas

Um morto muito louco

Cláudio Pimentel

         Sempre gostei de historinhas insólitas. Das que raramente acontecem e envolvem pessoas comuns. Gosto das que subvertem a lógica, revelando o que há de extraordinário no ordinário cotidiano que nos cerca. Elas me encantam. Acontecem há milênios, mas se desvelam apenas num momento fortuito, de pura sorte para quem vê. Quando o acaso permite, trato-as aqui, em minhas crônicas, situando-as em nossa aldeia global, sem me imiscuir no fato, seus motivos e razões. Prefiro investigar a mensagem oculta que guarda e traçar paralelos com a realidade política, econômica e social que vivemos. São ilações. Desconheço os efeitos. Mas se perguntarem: mexem com os sentimentos de alguém? Direi: espero que sim.

São histórias como a do “Bebê Albert”, um dia de idade, encontrado enroladinho numa farda escolar, acomodado numa caixa rosa de sapatos, deixada num ponto de ônibus, como se fosse viajar. Aconteceu em 13 de março de 2013, véspera do aniversário de Salvador, pertinho do Domingo de Ramos. Senti que quem o abandonou, a mãe, acreditava no futuro dele e não mais no futuro dela, cujo abandono jamais foi resolvido. Destino, aliás, de muitos que se encontram nessa babel pobre, suja, violenta e injusta. “Bebês Alberts” são descartados todos os dias enrolados em jornais, nas ruas ou em casa mesmo.

Mudança no destino quem conseguiu foi o rebelde “Boizinho Tobogã”. Uma surpresa que bateu à porta da felicidade em novembro de 2021. Às vésperas de virar churrasco nos diversos rodízios do interior de São Paulo, ele resolveu se refrescar e mudou de vida. O garrote, de dois anos, pulou a cerca de um clube náutico, vizinho à fazenda em que pastava, escalou um toboágua e escorregou até cair na piscina. A ousadia revogou o abate e fez dele um animal de estimação do dono. Quem disse que gado não muda?

A história do Eduardo é educativa e mostra o quão ainda acreditamos em outros mundos, outras vidas, outras dimensões. No enterro do pai, depois de consolar a todos, esperou que saíssem e, já saudoso, permaneceu mais um pouquinho para se consolar com o “velho” de tantas histórias e cumplicidades. Um momento cósmico. E tão intenso que o fez esquecer do horário, ficando preso no cemitério, cujos muros eram mais severos que os da Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Seu azar.

Com a bateria do celular descarregada, num empreendimento sem vigias – aliás, para vigiar quem? –, com portões gigantescos e fechaduras pesadas, sem abertura para fora e de noite, o jeito foi pedir ajuda a quem passasse pela rua. Ele via quem se aproximava, mas estes não viam quem os chamava. Ora se assustavam e corriam, ora afastavam-se rezando ou obsequiosamente em silêncio. Não adiantava dizer que estava vivo e preso por acidente. Recuavam de costas, cabeça baixa, fazendo o sinal da cruz. Para todos, tratava-se de um fantasma em busca de paz.

“Um morto muito louco” (1989) foi uma das muitas comédias norte-americanas que se notabilizaram pelo humor mórbido, escatológico e de gosto duvidoso. Nem todo brasileiro ri. Ou ria. “Todo mundo em pânico”, “Apertem os cintos, o piloto sumiu” ou “Loucademia de Polícia” têm o mesmo DNA. São pastelões diferentes dos nossos, com muitas drogas, bebidas, cigarros e tontices. Porém, a presença nesta semana de uma senhorinha, com feições de quem pertence ao elenco de chanchadas brasileiras, mudou tudo. Adentrar um banco, empurrando o Tio Paulo, morto numa cadeira de rodas, atrás de um empréstimo foi um “must”. E não previsto! O velho pode ter morrido na busca por dinheiro.

Teria sido mais fácil cair no golpe do empréstimo consignado. Nem precisaria de morto. Nem de vivo. Diariamente, dezenas de velhinhos têm suas aposentadorias roubadas com falsos empréstimos consignados, feitos pela negligência dos bancos e de quem devia cuidar deles. É uma indústria que provoca uma dor infinita em quem é roubado, às vezes, por meses, às vezes, para desfazer o mal e restituir as perdas. Aí, sim, a morte é certa: da alma, do ego, da consideração, do respeito, da cidadania, da autoestima. E ninguém consegue impedir. Uma vergonha!

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 19.04.2024

Nenhum comentário:

Postar um comentário