sexta-feira, 29 de março de 2024

crônicas

Ler para viver num mundo ameaçado

Cláudio Pimentel

         Diante da terrível constatação de que dirigentes da República urdiram, executaram, acobertaram e comemoraram o assassinato da vereadora Marielle Franco, do Rio de Janeiro, só resta botar a viola no saco, sair de fininho e entregar tudo ao inopinável, ao inefável, ao abominável, ao inaceitável. Estamos sós. Assim me sinto. Talvez alguém mais. O professor Eduardo Bueno, o “Peninha”, em “live” pelo Youtube, no canal “Buenas Ideia”, não mediu palavras para irradiar indignação. Porém, poupou palavrões! Não havia clima. Eram pueris perante a gravidade da descoberta. Lembrou que o Rio é, desde o berço, uma academia do crime. E deu o endereço de obras que tratam do assunto. “Está nos livros, mas vocês não leem!”, advertiu.

         São simbólicos os fatos envolvendo a morte da vereadora. Um dos supostos assassinos, o ex-PM Adriano Nóbrega, do Rio, acusado de comandar milícias, foi morto na Bahia em confronto com policiais baianos. Ex-capitão do Bope era investigado pela morte da vereadora, mas as apurações não prosperaram. À Polícia Civil dizia “não se recordar ao certo” onde estava na noite de 14 de março, data em que foi assassinada. Então deputado estadual pelo Rio, Flávio Bolsonaro homenageou Adriano com a Medalha Tiradentes, a mais alta honraria da Assembleia Legislativa fluminense. Que fora! E pior, foi em 2005, quando o cara estava preso, acusado de homicídio. Mãe e mulher do PM trabalharam para Flávio. “Tutti buona gente!”

         O PM Ronnie Lessa, autor da delação premiada à Polícia Federal sobre o caso Marielle, causa perplexidade. Apontado como um dos executores, Ronnie, que também foi homenageado pela Alerj, foi preso em março de 2019, em sua casa, no mesmo condomínio onde Bolsonaro tem casa, o Vivendas Barras. As casas no local variam de R$ 1,5 milhão a R$ 4,5 milhões. Como é possível? Entretanto, o fato mais expressivo da epopeia envolve o ex-deputado federal e ex-PM Daniel Silveira, “anistiado” pelo presidente Bolsonaro depois de condenado à prisão, pelo STJ, por praticar e estimular atos antidemocráticos a instituições e ataques a ministros do Supremo. O que fez de mais revelador foi destruir a placa “Rua Marielle Franco” e exibi-la quebrada com as próprias mãos nas redes sociais. Era o troféu de um crime que se supunha impune.

         Quando eu ando assim meio “down”, costumo recorrer a um amigo, Montaigne. Ou, então, pego no pé de alguma vítima, os EUA. Espécie de “louco beleza” do século XVI, o filósofo francês produziu centenas de ensaios cujo foco não era explicar ou ensinar alguma coisa a alguém, mas apresentar, por meio de suas próprias experiências, modelos de como viver a vida sem temor, sem estresse, sem frescuras. Ele queria saber como viver bem a vida. Portanto, que todos fizessem assim: vivam a vida sem freios, mas sem prejudicar o outro. Caso contrário, que se responsabilize. Juízo é algo que todos devem ter. Enquanto Sócrates fazia perguntas aos outros, Montaigne propunha perguntas a si mesmo. Faça isso e seja sincero.

         Quanto aos EUA, nada contra. Só a leitura que faz do mundo que surpreende. Muito diferente de Brasil e países europeus, mais sábios quando o assunto é alimentação. Com medo de catástrofes, eles agora estão estocando refeições com validade de até 30 anos. Às vésperas da Sexta da Paixão, onde no Brasil muitos passarão fome e outros vão saborear bacalhau, camarão, lagosta e todo tipo de peixe, a novidade americana é uma loucura. As comidas de emergência, como chamam, já fazem parte de suas vidas há décadas, e agora virou trend nas redes sociais. Ganhou até apelido: comidas do fim do mundo. A doidice não é nova. Em 2002, o pão sumiu do cardápio norte-americano. O culpado foi o lobby da carne, considerada a vilã da obesidade, que virou o jogo e colocou o carboidrato no lugar.

         Vendidas geralmente em pó, dentro de baldes, duram 30 anos sem alteração de sabor ou qualidade. São vendidas pela internet e nos supermercados, custando em média 100 dólares. Têm café da manhã, almoço e jantar. Uma loucura. Não consigo imaginar algo parecido entre nós, mas posso dar duas dicas de filmes que podem ajudar nisso: “A última noite” (2021), quando o mundo luta, em meio ao Natal, contra o apocalipse; e “O mundo depois de nós” (2023), quando uma catástrofe ameaça ferrar o feriadão. Sem spoiler. Acreditem nas crianças. Os adultos andam muito xaropes.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 20.03.2024


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