sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

crônicas

Um defeito de cor

Cláudio Pimentel

         A atualidade nos mata... aos pouquinhos, como o colesterol. Embriagado pela preguiça, deixei-me, em meio à metáfora das cinzas, abandonado diante da TV, vendo algo que não via há anos: a apuração das escolas de samba do Rio. Tentei fugir, mas fraquejei ao ilusório, ao fortuito. Algo dizia que era a vez da morbidez. Então, me joguei na avenida. Com exceção dos cabelos da peruca do mestre de cerimônias Jorge Perlingeiro, que quase cresceram como os de Sansão, nada mudou. Até as lágrimas de gente poderosa, que aguardava um lugar ao Sol, mantinham as semelhanças de outrora, desfilando, insopitáveis, por bochechas marcadas pela cadência bonita do samba. Ao final, contagens e justificativas chamam a atenção não pelo que mostraram, mas pelo que sugeriram.

         Desfile de escola de samba deve nos fazer sonhar como o cinema. A lógica do passista, que evolui desafiando a gravidade e os espaços, deve ser similar às entrelinhas do enredo e seus aspectos lúdicos. O diferencial é a honestidade da leitura que a escola faz de si. Há as que propõem sofisticação; e outras, o pragmatismo. Existe perda? Não deveria. Do ponto de vista das arquibancadas, o que vale é o espetáculo, o brilho; do ponto de vista dos jurados, é o casamento entre proposta e realização. Equação de difícil compreensão. Porém genuíno, mesmo considerando que sempre exista a suspeita de compra de julgadores. O aparato de segurança para os envelopes de notas, transportados em carro-forte, e a quantidade de julgadores, quatro para cada um dos nove quesitos, emitem sinais trocados.

         O desfile de 2024 teve três escolas com enredos similares, mas avaliações divergentes, considerando-se as notas: a campeã Viradouro, com “Arroboboi Dangbé”, trata da força da mulher negra, ao longo dos séculos, da África ao Brasil. A Vila Isabel com “Gbalá – Viagem ao templo da criação”, aponta, numa narrativa Yorubá, os desvios do mundo, propondo como salvação levar todas as crianças ao Templo da Criação. A Portela, com o enredo “Um defeito de cor”, baseado no livro homônimo, de Ana Maria Gonçalves, propõe uma reflexão sobre a história das negras mães de todos nós, perguntando-se: Por que somos? Por que assim fazemos? Por quem lutamos? Em memória de que?

         A Viradouro ficou em primeiro lugar (270 pontos), a Portela em quinto (268,9) e a Vila Isabel, em sexto (268,8). Houve momentos, durante a apuração, que Portela e Vila Isabel, a cada décimo que perdiam, seriam jogadas nos últimos lugares, apesar de suas apresentações terem sido tão convincentes quanto a da Viradouro, que liderou do início ao fim a contabilização dos pontos. A diferença das notas não mexeu com a curiosidade dos analistas da TV, apesar de se manifestarem o tempo todo sobre a profundidade do tratamento dado ao tema pela Portela e a competência da Vila Isabel, quando tem Martinho da Vila envolvido na sua produção. Ambas foram páreo fácil para o espetáculo de cores, criatividade e engajamento da Viradouro.

As quatro perguntas do enredo da Portela, porém, deveriam, a partir de agora, fazer parte do cotidiano dos brasileiros. São questões que precisam ser respondidas todos os dias. Mais que isso, o livro “Um defeito de cor” deveria ser lido por todos, não só pela sua importância histórica, mas pela qualidade da escrita e capacidade de emocionar. Do meu ponto de vista, a Portela, que ganhou o Estandarte de Ouro, da Rede Globo, como a melhor escola no desfile da Sapucaí, é honrosamente a campeã de 2024. A Viradouro, apesar do belo enredo, ganhou também pela competência estética. Como consolo, o livro, lançado em 2006, e com 952 páginas, alcançou o topo dos mais vendidos da Amazon, depois de escolhido para enredo. Que continue assim. É a história do Brasil ganhando as cores certas. E sem defeitos.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 16.02.2024

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