sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

crônicas

Agonia gostosa

Cláudio Pimentel

         A Internet e as Redes Sociais foram implacáveis com o jornalismo. A principal arma, que era dar a notícia em primeira-mão, esvaziou-se com a capacidade das Mídias Sociais em noticiar em tempo real. A imprensa teve que se reinventar e ainda continua correndo atrás da solução. O jornal impresso, com cada vez menos páginas, colhe os cacos para sobreviver; e a televisão, aos poucos, vai se recompondo, exibindo agora seus telejornais em tempo real. A mudança, porém, demonstra os efeitos colaterais: imprecisão na informação; e a lenta adaptação à divulgação ao vivo. O que era “primeira-mão” passou a ser “atualização”. Os veículos agora correm para atualizar a notícia antes dos outros.

         A adaptação do telejornal, produzido durante décadas em vídeo tape (VT), é dramática. Não há edição, local ou nacional, que não exiba falhas: links que não entram; transmissões que caem; e jornalistas que se perdem por pobreza vocabular e baixa fluência verbal. O teleprompter, equipamento que exibe o texto lido pelo âncora - funciona acoplado às câmeras – tem os dias contados. É tudo para ontem! Nós, sobretudo jornalistas, temos noções dos níveis de usos ou registros do idioma: formal, ultraformal, informal descontraído, informal ultradescontraído, todos presentes nas múltiplas instâncias de nossa comunicação. O uso formal, que disputa espaço com o uso culto, é o ideal, mas não é o que acontece. Hoje até o nível “informal ultradescontraído” se impõe, especialmente no jornalismo policial e local.

         Na cobertura carnavalesca é o nível “informal ultradescontraído” que principia. Não é o ideal, mas o que fazer? Não é pecado, até porque é o ambiente que define o nível. O Carnaval é a expressão mais popular do país, e a forma de se comunicar se estabelece de forma autêntica e sem resistências. Pois foi acreditando nisso, baseado em alguma memória no canto da minha mente, que despertei para pescar o inesperado: a expressão “agonia gostosa”. Destabocou na enxurrada de clichês despejada pela TV num flash do pré-carnaval de Salvador. Fugia à lógica. Pensei: moda nova? Mirei a imagem e conclui: ato falho. Fruto do improviso em grandes eventos. O profissional se desconecta. A imagem era agoniante mesmo: espaço exíguo, dezenas de foliões, câmera do alto, calor, suor, barulho, água empoçada. Eca!

Seria aceita nos círculos do Inferno de Dante. A imagem mexeu com a jornalista, que, ao mencionar “agonia”, percebeu um possível erro – criticar não estava no plano. Freou o ímpeto, respirou fundo e complementou: “gostosa”. Algo prazeroso. E seguiu em frente elogiando o evento, carro chefe da programação da TV, que apostou na alegria da festa. Considerando que agonia é o conjunto de fenômenos mórbidos que anunciam a morte ou que causa ânsia de morte, não ficava bem uma agonia que não fosse gostosa. Foi uma saída honrosa. Freud abrigaria a falha com louvor, oferecendo mais lições sobre os nossos consciente e inconsciente.

Há quem diga ser uma necessidade imediata, mas fazer jornalismo ao vivo é, ao meu ver, o futuro do jornalismo. É o que mais exige do profissional, pois depende da capacidade de apurar, organizar as ideias na mente e discorrer, como um ator. Impossível? Não. Difícil? Sim, mas viável. Li, certa ocasião, que Galvão Bueno era o jornalista para tanto. Lembraram que se os sistemas de uma rádio ou TV caíssem, mas sobrasse apenas um microfone, ele manteria a emissora no ar.

Atuei numa rádio, no Rio, como redator. Tinha 19 anos. Um dos locutores, Manoelito Gomes, de 70, insistia que eu fizesse artigos para ele ler no ar. Tinha uma voz belíssima. Eu desconfiava. O chefe de reportagem disse: “Faça, o velho vai ficar feliz”! Inseguro, tinha dúvidas se escrevia mesmo. Fiz um artigo. Ficou tão bonito na voz dele, que fiz outro e outro e... Um dia, ele não foi. Eu teria que ler. Quase morri. Disse que não, mas não adiantou. Bem, avisei mãe e irmãos e fui ao cadafalso. Ia bem até tropeçar numa palavra, êxodo, que li “exodo”, sem acento. Quando cheguei em casa, a primeira coisa que ouvi: “Senhor “Exodo”, como foi seu dia na rádio?” Era meu irmão.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 09.02.2024

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