sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

crônicas

A pergunta que não fiz

Cláudio Pimentel

         Sócrates nada escreveu. O que se sabe sobre ele chegou até nós por meio de escritos de discípulos, como Platão e Xenofonte, entre outros. Em todos, porém, havia algo em comum: ele fazia perguntas. E as fazia de tal forma que, provavelmente, o levaram à morte. O filósofo conduzia as pessoas a buscarem conhecimento por meio de perguntas. Acabou forçado a tomar um chá de Cicuta - planta venenosa – depois de ser condenado por desvirtuar os jovens de Atenas. Um eufemismo à censura que sofreu dos poderosos que habitavam a capital da democracia e temiam até onde essas perguntas iriam induzir a população. Perguntas amedrontam. Perguntar é o devir - vir a ser - da filosofia e da ciência.

         Algumas máximas brincam com o perigo intrínseco numa frase questionadora. Podem ser defensivas, como “Perguntar não ofende”; agressivas como “Crivar de perguntas”; ou desafiadoras como “A pergunta que não quer calar”. Esta, aliás, dá nome ao filme “JFK – A pergunta que não quer calar” (1991), do diretor Oliver Stone, que trata da investigação do assassinato do presidente John Kennedy, na cidade de Dallas, em 22 de novembro de 1963. Até hoje o crime cria polêmica e convive com a suspeita de que escondeu os verdadeiros culpados. No Brasil, desde 14 de março de 2018, pergunta-se “Quem mandou matar Marielle Franco?”, vereadora da cidade do Rio de Janeiro, morta a tiros num atentado no bairro da Lapa. A investigação sofre do mesmo mal de JFK. Falta quem mandou.

         O jornalismo é, talvez, uma das profissões que mais depende da pergunta. Não há jornalismo sem entrevista, assim como não há entrevista sem perguntas. Na raiz de uma reportagem, incluindo as fontes, está a milenar arte de fazer perguntas, assim como Sócrates fazia. Foi na disciplina de Reportagem, na faculdade de comunicação, que comecei a pegar as minúcias do perguntar. O professor, que era diretor de redação de importante revista masculina dos anos 1980, transformou a sala de aula numa redação, dividiu os grupos em editorias – política, economia, cidade, polícia... – e deu como tarefa fazer uma reportagem sobre o bairro de Madureira, cujo comércio, à época, só perdia, em volume de vendas, para o bairro de Copacabana.

         Não me lembro dos prazos, mas recordo que as aulas aconteciam da seguinte forma: cada editoria apresentava ao professor o material obtido, ele orientava o que fazer e dava novas tarefas. Todos assistiam às intervenções dele. Nessas horas, ouvíamos que a melhor entrevista é aquela em que as perguntas são simples e diretas. Não podem ser longas, como se fosse a de um acadêmico exibindo seu conhecimento. Pedia para evitarmos perguntas que estimulam o lugar-comum, mas respostas objetivas, claras e concisas, que facilitariam a redação. Ao contrário dos meus colegas, não precisei fazer entrevistas. Minha tarefa foi levantar os pontos do Jogo do Bicho no bairro, a presença de policiais ao redor, o movimento de apostadores e a forma como o negócio funcionava. Era só observar, conversar e registrar. Tiramos dez.

         Algum tempo depois, vi o bairro de Madureira surgir com todas as suas cores nas páginas da revista do professor. Era diferente do trabalho que fizemos, mas abordava de forma sucinta todos os assuntos que apuramos. Era mais apelativa, tinha um caráter denunciador e mostrava os perigos do bairro. Baseou-se no que fizemos? É difícil dizer. Obviamente, o nosso trabalho chamou a atenção para o bairro. Serviu de pauta. A matéria tinha autoria. Não era cópia. Mas fiquei chateado.

Passaram-se os meses e encontrei o professor apresentando, no auditório da faculdade, a reformulação que fizera na revista, a partir de pesquisa com leitores. Ampliaram o espaço dedicado à cultura, política, economia, moda, saúde, beleza, enfim, coisas que ajudassem o homem a ser mais elegante e melhor informado. Nada falou sobre mulheres nuas, carro chefe da revista. Pensei numa pergunta vingativa. Não a esqueço. “Professor, o que aconteceu com os homens de sua revista? Perderam o interesse pelas mulheres?” Às vezes, acordo assustado com a sensação de que a fiz, mas logo percebo que era um pesadelo. Uau!

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 08.12.2023

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