sexta-feira, 8 de março de 2024

crônicas

Ed Mort procura Mandrake na Terra do Sem-Fim

Cláudio Pimentel

         Há um trecho em “Cinema Novo” (1993), canção de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que nos inspira a mergulhar na vida, não apenas na minha ou na sua, mas em qualquer vida do universo: “...as coisas grandes e pequenas, que nos formaram e estão a nos formar”. É o briefing divino para um passeio poético ou filosófico, de viés existencialista, ou então dançante, como quer o samba, em meio à realidade colorida, falastrona, indigente e belicosa a nos envolver. Surgiu durante um sonho em que tentava enxergar, no porão da metrópole, o rosto de Lady Di. Via tudo na tela, menos ela, menos ela. Acordei.

         Após um semestre estudando “tropicalismo”, nos anos 1980, na Faculdade de Comunicação, passei a fazer trabalhos escolares com o viés humorado dos movimentos culturais que passavam pelas salas de aula: Semana de Arte Moderna, Cinema Novo, Bossa Nova... Eu estava encantado com tudo, o que, na prática, não queria dizer inspirado. Os colegas adoravam e me enchiam de entusiasmo, mas não era o que os professores esperavam. Para eles, eu saía do foco e viajava para terras nunca dantes vistas. Uma professora, a que mais amava, me acusou de fazer humor para fugir da realidade. Até hoje não absorvi o que disse. Como não rir diante da realidade que vivíamos e ainda vivemos?

         Cresci ouvindo, de troça, em casa: “é o pai quem você deve seguir”. O pai citado não era o meu, mas Érico Veríssimo, autor de obras inquestionáveis como “Clarissa”, “Incidente em Antares” e “Um certo capitão Rodrigo”. E tudo porque eu dizia, a quem quisesse ouvir, que um dia iria escrever como Luís Fernando Veríssimo. Provocavam: é o Veríssimo errado. “É o pai!” Guardei dele todas as crônicas publicadas na última página da revista Domingo, que vinha encartada no Jornal do Brasil. Eu as lia sempre às 6 horas, assim que abria o armazém de meu pai, onde, além de bebidas, hortifrutis, cereais e carnes, vendíamos também jornais. Ele abria meu domingão com humor.

         Não tenho tudo que LFV escreveu, mas quase tudo que produziu em livros, os quais descansam em área especial em minha iluminada biblioteca: espremido entre os livros de Rubem Fonseca e os de Jorge Amado. Quando não tenho o que fazer, sonho que, daquele canto da estante, um dia sairá, do encontro das três coleções, uma obra-prima de viés inclassificável, mas poder fantástico e espetacular. Ou, então, algo como “Ed Mort procura Mandrake na Terra do Sem-Fim”. Isso tudo me levou a outro gaúcho de humor tão refinado quanto ao de LFV: Mário Quintana, o das historinhas, dos causos e das anedotas. Poeta que seria tranquilamente autor do que Caetano firmou em “Cinema Novo”. Geniais.

         Foi na iluminada biblioteca que revi, recentemente, um livreto que talvez seja difícil de encontrar hoje. “Ora bolas – O humor de Mário Quintana”, de Juarez Fonseca, (2006). O livro contém 130 historinhas contadas por amigos, parentes e conhecidos que assistiram o momento em que foram criadas. Nasceram do cotidiano de Quintana. Ele morreu em 5 de maio de 1994, e neste ano completa 30 anos que se foi. Seu enterro, aliás, teve o aparato oficial esperável com as lágrimas e as declarações de sempre. E teve festa também. Ele manteve a compostura até o fim. Mas nem sempre foi assim.

Numa ocasião, declinou de um quadro que o amigo e pintor Waldeny Elias lhe ofereceu. Era muito grande... Retribuiu com um livro. Na dedicatória explicava-se: “Querido, me desculpe e acredite. Eu não tenho paredes. Só tenho horizontes...” A outro amigo, Silvio Braga, que resolveu seus problemas com o IR, atualizando suas declarações no computador, mandou o seguinte verso: Sei que meu cálculo é infiel; Na mais inglória das lutas; Lido com pena e papel; E tu, ó Braga, computas.

Em um encontro, em 1992, com Caetano Veloso, em Porto Alegre, o artista ouviu de Dulce, uma das anjas de Quintana, que falasse alto, pois o poeta estava surdo. Ele se danou, disse que era mentira. Caetano, então, lembrou que leu na juventude, em Santo Amaro, a tradução dele para “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust, e a impressão que deixou foi fantástica. Mas Mário colocava a mão no ouvido e pedia ajuda: “Hein, o que ele está dizendo; o que ele está dizendo”?

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 08.03.2024

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