sexta-feira, 24 de novembro de 2023

crônicas

A revolta das gavetas

Cláudio Pimentel

         O ano nem bem chegou ao fim e já está me cobrando uma série de promessas feitas, em seu início, que ainda não foram pagas. As gavetas exigiram. Puxam a fila, seguidas pelas estantes e meu pequeno e adorável escritório e sua mesa, sempre ternos companheiros. Certamente, foram levados à rebelião pelo azedume delas, que, por serem pessoais, tornam-se donas de segredos que lá escondemos até de nós mesmos. É um inconsciente externo com documentos, cartas e imagens. Se fossem chantagistas, estaria frito. Já as teria limpado e organizado à força. Mas, como não são, convivem com o excesso de papéis, objetos inúteis, pastas esfarelando, agendas envelhecendo, recortes de jornais e revistas desbotando e pilhas. As gavetas são depósitos de canetas, pilhas e nostalgia.

         O mundo dos livros, do teatro e do cinema sempre teve uma gaveta maldita, que vai acabar com a vida de um personagem, ou bendita, pronta para salvar outro. Nem mesmo com o advento dos computadores e o mundo digital, as gavetas perderam sua majestade. Os segredos ou documentos escondidos em um drive não têm o mesmo efeito hipnótico de um documento saído de uma gaveta e esfregado na cara de um vilão pegajoso. É uma prova palpável de culpa ou inocência. As gavetas domésticas, apesar da ausência de glamour, guardam poder semelhante. Afinal, quem é que nunca guardou uma nota fiscal de ar condicionado ou de televisão, registrando o período de garantia do produto, e não o encontrou quando mais precisou para pedir um conserto sem custos? Parece até que elas escondem documentos de propósito. Eu não duvidaria de nada. Afinal, historicamente, temos até os nossos engavetadores oficiais da República! Some-se tudo...

         Há algum tempo, eu e minha mulher precisávamos renovar um seguro ou plano de saúde e, para tanto, além dos documentos de praxe, deveríamos apresentar também a certidão de casamento. Procura daqui procura de lá, cadê a certidão? Não achávamos em nenhuma das gavetas. Elas ouviram nesse dia... Ah, ouviram! O jeito seria ir a um cartório e pedir uma nova. Foi o que fizemos, temendo que não fosse aceita, uma vez que, para nós, não era a original, ou seja, a original que recebemos no momento do matrimônio. Comparecemos à entrega um pouco aflitos. A certidão seria aceita? Como foi, arrisquei dizer que estávamos inseguros quanto ao desfecho e tal... A atendente respondeu de chofre: “É esta que vale. Prova que vocês não se separaram”. Nonsense puro! A certidão atualizada virou certidão de não separação.

         Acredito, porém, que qualquer pessoa tem alguma história envolvendo gavetas. Desde o aroma delas à quantidade de coisas estranhas que escondem. A melhor é abrir gavetas na casa dos outros... É cada surpresa! Acho que a mais comum é não achar algo na hora que mais se precisa. Eu, por exemplo, tenho pastas identificadas por temas e colocadas em gavetas específicas: INSS, Receita Federal, IPTU etc.. Há tempos não as manuseio. Recentemente, precisei da referência de um desses documentos e não achei. Estava relacionado a um ano específico e, apesar de encontrar todos os anos guardados, a referência solicitada tinha desaparecido. Em todos os outros documentos, a tal referência se fazia presente. Naquele que eu precisava, não. Foi angustiante. Tempos depois a achei, solta no fundo de outra gaveta. Pensar o quê? Fui descuidado? É mais justo.

         A situação, porém, em nada se compara a encontrar um crachá de seu primeiro emprego; ou um pequeno gravador, daqueles que pareciam de agentes secretos dos anos 1980. Cartas de namoradas, então, que não se sabe nem por onde andam mais, nos levam a cada viagem! E as fotos? São um festival à parte. Cutucam as lágrimas. E escritos: a primeira matéria jornalística; a primeira matéria especial; a primeira crônica. As gavetas são um mundo particular. Arquivo de nossas vidas, cujos capítulos se encontram aos pedaços, de forma aleatória e peralta. Nada, porém, se iguala a, num dia à toa, mexendo aqui e acolá à procura de algo qualquer, encontrar um envelope com uma quantia em dinheiro suficiente para comprar o mundo, pelo menos naquele instante.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 24.11.2023

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