sexta-feira, 17 de novembro de 2023

crônicas

Diário das dores

Cláudio Pimentel

         Certos estavam os índios que não comiam feijão e nem, muito menos, posavam para câmeras fotográficas porque temiam perder as almas. Motivos: a digestão do feijão a expelia aos poucos do corpo e a câmera a abduzia num simples clic e colocava no papel. Superstições, folclores e medos à parte, porém, nunca se mostrou tanta feijoada e se bateu tantas fotos depois do advento das redes sociais. É como se a alma fosse um inimigo que precisasse, a cada instante, ser banida da face da Terra. E, de preferência, levando consigo a elegância, a inteligência, o amor, a tolerância e a compaixão.

         Dia desses, aqui neste mesmo espaço, comentei que “qualidade de vida” deveria ser a forma essencial de justiça num país. Um direito de todos, como é a vida. Para quê vida se não há qualidade? Os dois se completam, se misturam, são inseparáveis. Para que isso ocorra, porém, é necessário algo mais: uma sociedade cuja base se sustente na compaixão. Sentimento que parece estar em vias de extinção, se é que já não está extinto. Seria como o ar que respiramos. Mas todos os dias somos expostos a exemplos de crueldade, desumanidade, ódio. Tivemos até um gabinete do ódio, sustentado por dinheiro público. O século XXI ainda não nos trouxe nada de bom. Mostra apenas que somos incapazes até de manter mínimas formas civilizadas de convivência.

         O século precisa de uma imagem, que não seja a guerra, a fome, a doença, a ganância ou as panes climáticas. Precisa de uma imagem positiva, de reconstrução, de futuro. E urgente. Pois a falta de imagem torna-se a imagem. E a paisagem que está aí é muita feia. Dá a impressão de que as estrelas jamais sairão dos seus esconderijos diurnos. É tão nefasta que faria o Marquês de Sade empalidecer. Precisamos provocar os raios de Deus contra o mal. Mesmo que Ele não exista. Caminhamos para o fim do primeiro quarto de século sem nada nas mãos. A nos acompanhar apenas sangue, dor e a desconfiança de que a barbárie bate à porta. Nossas almas estão desgraçadamente perdidas.

         O mundo cambaleia em sua caminhada. Suas lideranças mostram-se inseguras. Pouco arriscam. Agem apenas dentro do protocolo. Falam em democracia como se falassem de futebol. Não conseguem explicar que os problemas que vivemos nada têm a ver com a democracia. Eles são consequência de uma nova “ideologia”: a economia. Nossas lideranças tornaram-se escravos dela, que é uma grande caixa fechada e funciona por si só, ela e seus números de ouro. Tem meneios ditatoriais: ou é ou não é o que quer. E nós, as vítimas. A economia virou nossa espada de Dâmocles. A qualquer momento cai e nos decepa. Vejam a Argentina: neste domingo a população vai às urnas escolher em qual dos precipícios vai se jogar: Javier Milei ou Sérgio Massa. É injusto. Não deveriam ter caído nessa armadilha.

         A vida está cheia de costumes bárbaros. Talvez seja por isso que ela tanto nos ronde. O número de negros mortos nas capitais em confronto com policiais em grandes cidades e capitais do país, merece uma intervenção. O que é isso? Em Recife, apenas negros foram mortos por essas forças! Em Salvador, o número de mortos em confrontos com a polícia cresceu 300 por cento em sete anos. O quadro é semelhante no país. Algo está errado. Quando governadores e prefeitos não conseguem resolver questões como segurança e transportes públicos, quem perde é o Brasil. Como sustentar um discurso de crescimento para o país diante desse panorama, que ainda tem as questões de moradia, saúde e formação escolar. Nunca estivemos tão despreparados. O ar está irrespirável. A propósito: as palavras são janelas ou paredes?

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 17.11.2023

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