sexta-feira, 10 de novembro de 2023

crônicas

A última orgia

Cláudio Pimentel

         O mundo está em metástase. Pincei o termo médico do inquieto sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard (1929-2007), que a utiliza como metáfora para identificar a decrepitude dos desejos humanos diante das soluções concebidas para explicar não só a existência mas também os caminhos percorridos por ela. Lembrei-me dele por ser inovador, surpreendente, intenso. Um destemido a perguntas e respostas embaraçosas. A viagem, porém, não começa aí, mas, numa tarde do feriadão de Finados, sob os retumbantes acordes do grupo “Gypsi Kings”, formado por ciganos franceses, que alcançou sucesso nos anos 1980/90. Eles estavam a todo vapor na caixinha de som JBL, numa explosão de alegria que contrastava com a explosão de bombas em Gaza, no caixão da TV.

         Um oceano de nostalgia me engolfou. A Baixada Fluminense, nos anos 1970, onde residia, era um caldeirão étnico: abrigava contingentes negros, nordestinos, portugueses, espanhóis, árabes, judeus, ciganos... Uma Babel. Foi em Nova Iguaçu que experimentei pela primeira vez o pão sírio, inigualável se comparado a outros congêneres do Oriente Médio. Foi lá também que apreciei os primeiros quibes e esfihas. Mágicos! O sanduíche Beirute, por exemplo, só presta se o pão for sírio. Aprendi com um colega da escola, o moreno Raizan, que nasceu na Síria. Fazíamos o ensino médio, e, na sala de aula, tinha outro menino de fora, o ruivo Jac, diminutivo de Jacob, de Israel. O conflito árabe-judeu estava encapsulado ali. Ambos seriam convocados pelo serviço militar de seus países. Eles temiam a guerra.

         Considerado um dos principais teóricos da pós-modernidade e um dos autores que melhor diagnosticaram o mal-estar contemporâneo, Jean Baudrillard é autor de ideias que revolucionaram a maneira como vemos a realidade e o mundo ao nosso redor. Pensador polêmico, ele desenvolveu uma série de teorias sobre os impactos da comunicação e das mídias na sociedade e na cultura. Em “Após a orgia”, um dos 22 artigos que compõem o livro “A transparência do mal – Ensaios sobre os fenômenos extremos” (2006), ele entende que houve uma orgia, um momento explosivo da modernidade, o da liberação em todos os domínios: política, sexual, forças produtivas, forças destrutivas, mulher, criança, pulsações inconscientes, arte, ideologias. Um auge lampejante. “Hoje tudo está liberado, o jogo já está feito e encontramo-nos coletivamente diante da pergunta crucial: O que fazer agora após a orgia?” Acender um cigarro?

         Não. Nada mais há que se fazer, a não ser simular, fingir que buscamos respostas para o que já foi respondido, para resultados já conhecidos, fazer o que já foi feito. Viramos cópias xerox. É como se as utopias tivessem se definido. A liberdade assumiu o estado da arte: infinita. Os nazistas tiveram sua degustação, mas o freio moral barrou sua materialização, impedindo a morte do mundo. Mas a um custo absurdo: as sementes do nazismo e fascismo hibernaram. Aproveito, então, Baudrillard para supor que há uma liberação ainda não completa em marcha: a guerra. Exagero? Sim, mas plausível! Guerras ocuparam todos os tempos, mas em todos sempre foram condenadas como imoral. Dois conflitos nos testam hoje: Rússia vs Ucrânia; Israel vs Hamas. São laboratórios com potencial suficiente para iniciar a terceira guerra, a nuclear. A afasia da ONU e dos EUA incomodam.

O impacto dos conflitos na sociedade é imprevisível. E não há solução. As que foram implementadas, falharam. A orgia final, portanto, seria também a última guerra. Diante do tédio humano a um mundo enfastiado, a guerra seria algo capaz de trazer novos caminhos, novas revelações, de acender o desejo, todos os desejos, até os sexuais. O mundo perdeu o tesão. E o juízo mais que nunca. O sentido da transversalidade, termo da academia, espalhou-se pelos domínios, sublimando um a um. Baudrillard ilumina: “Assim o sexo não está mais no sexo, mas em toda parte. O político não está mais no político, mas infecta todos os domínios: economia, ciência, arte, esporte... que não está mais no esporte, mas nos negócios, sexo, política, no geral”. Tudo é sexual. Tudo é político. Tudo é estético. Tudo é esporte. É o ter pelo ser. Um círculo vicioso que nos faz andar em círculos. Sobrou apenas a guerra. Nada é pela vida.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 10.11.2023

Nenhum comentário:

Postar um comentário