sexta-feira, 27 de outubro de 2023

crônicas

O que fazer com nossas “Faixas de Gaza”?

Cláudio Pimentel

         Apesar de não estarem cercadas por muros e nem sofrerem com o controle de entrada e saída de pessoas, comunidades como a do “Complexo do Alemão e da Maré”, na cidade maravilhosa, “Parada de Taipas e Jaraguá”, na cidade que não pode parar, e “Lobato e Mata Escura”, na primeira capital do país, não se diferenciam, em alguns aspectos, da Faixa de Gaza, na Palestina. Se lá a população é refém do “Hamas”, aqui é das quadrilhas de traficantes ou milicianos; se lá são mantidas confinadas por Israel, aqui são deixadas à própria sorte, carentes da presença do Estado. Rio, São Paulo e Salvador tornaram-se vitrines de um país apinhado de comunidades cuja última palavra é a do terror. Mas poderia ser qualquer capital do Brasil.

         O debate sobre a presença do Estado em nossas comunidades é antigo. E as advertências sobre os prejuízos que a ausência pode causar às futuras gerações são muito mais antigas ainda. De favorável, vale destacar que as discussões em torno delas ainda não foram contaminadas por questões políticas, ideológicas, históricas e religiosas, que são, talvez, os maiores problemas da Faixa de Gaza. No Brasil, o que está em jogo é a formação social, assistencial e educacional das populações que habitam esses “guetos”. As recentes descobertas, como a do treinamento de guerrilha para traficantes no Complexo da Maré, assombraram o país. A ausência do estado promove tal distorção. Estamos esperando o quê para ocupar essas comunidades? E com flores; nada de tanques.

         Um dos maiores impactos causados pela presença de traficantes cuidando da vida das pessoas, surgiu quando do lançamento de dois filmes: “Tropa de Elite” (2007) e “Tropa de Elite II – O inimigo agora é outro” (2010), ambos dirigidos por José Padilha e estrelados por Wagner Moura. Apesar da ficção baseada em relatos e livros da época, os dois filmes trouxeram uma perspectiva cruel sobre a tragédia que se abate nas comunidades cariocas. Se “Rio Babilônia” (1982), filme de Neville de Almeida, mostrou o ovo da serpente se abrindo, os dois filmes de Padilha mostraram o que as serpentes estavam aprontando. E elas continuam por aí. O retorno da extrema-direita à política do país é um exemplo trágico a nos assombrar. Algo maior, porém, já tinha acionado as sirenes.

         No dia 2 de junho de 2002, o jornalista Arcanjo Antônio Lopes do Nascimento, o “Tim Lopes”, da Rede Globo, foi sequestrado na favela do Cruzeiro, no Rio. O que restou do seu corpo, descoberto por testes de DNA, só foi enterrado 34 dias depois, por traficantes que o torturaram, esquartejaram e incendiaram os pedaços em barris com gasolina. Estava num local chamado de “forno de microondas”, onde outros 60 restos de corpos também foram encontrados. Tim Lopes, disfarçado de “cidadão comum”, tentava visualizar a tragédia social causada pelo tráfico de drogas em comunidades que integravam o “Complexo do Alemão”. Foi descoberto e pagou com a vida. Exemplarmente para que outros jornalistas não se atrevessem a tanto. Foi uma comoção. A tragédia completou 21 anos e nada mudou.

         Comparar nossas comunidades à Faixa de Gaza pode ser um exagero. Nunca descartável, porém. Há mais de 20 anos, ouço alertas para a tragédia em torno delas: a principal é a falta do Estado prestando assistência ao cidadão. Uma pesquisa da Unesco para assuntos de Educação, Ciência e Cultura realizada no Rio de Janeiro e em outras 13 capitais descobriu, nos anos 2010, que o traficante é o modelo de realização para adolescentes. Um choque! Deveria ser médico! A informação está no livro “Narcoditadura”, do jornalista Percival de Souza, um dos que tratam da delicada situação. Outros: “CV – PCC – A irmandade do Crime”, de Carlos Amorim; e “Rio de Janeiro – História de Vida e Morte”, Luiz Eduardo Soares. Esclarecedores. Estarrecedores.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 27.10.2023

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