sexta-feira, 20 de outubro de 2023

crônicas

O Grande Satã

Cláudio Pimentel

         Trabalhei numa organização, ali pelos anos 1990, que tinha uma obsessão: tornar-se uma das “Melhores Empresas para Trabalhar no Brasil”. Não era coisa fácil para empreendimento algum. Só para concorrer ao evento, a empresa tinha que passar por uma rigorosa “peneira”, na qual deveria preencher pré-requisitos de ordem institucional, trabalhista, jurídica, social... E, em seguida, permitir que seus empregados fossem submetidos a questionários que buscavam levantar a satisfação deles em relação à carreira, às chefias, ambiente de trabalho, benefícios, meritocracia, desenvolvimento profissional, oportunidades, enfim, um caminhão de coisas. E tudo no maior anonimato. E voluntário.

         Às vésperas do evento, as áreas de Recursos Humanos e Qualidade entravam em campo preparando a empresa para as etapas do programa. Uma consultoria externa orientava o trabalho, o que gerava uma relação rica de ideias, dicas e soluções, todas muito engenhosas. Como integrante da área de Comunicação acompanhava tudo. Era um barato! Lembro-me da ocasião em que um consultor, talvez o mais preparado dentre eles, discordou de uma imagem que integraria a campanha interna: um aperto de mãos. O veto foi uma surpresa. Vinha de quem mais defendia o uso de frases e símbolos que fortalecesse os valores de união, confraternização e companheirismo. Para nós, a imagem era perfeita. Para ele, não.

         O grupo se dividiu. De um lado os técnicos e, de outro, o consultor. O debate já se alongava quando, finalmente, ele revelou o motivo para desclassificar a imagem. Estávamos ainda, naquela década, vivendo os primeiros anos sem a presença da ditadura, e uma das imagens que mais frequentava os jornais, junto à avalanche de denúncias de corrupção no país, era o epíteto “crime do colarinho branco”. O aperto de mão, ele percebeu, trazia o punho de camisa e paletó, o qual remetia à imagem do colarinho branco, homens de negócios, corruptos e corruptores, confraternizando-se. Uma viagem, não é mesmo? Ele nos convenceu. Talvez, não desse em nada, mas era melhor não correr riscos de contaminar a campanha com um símbolo negativo.

         Como se fosse num raio, lembrei-me de tudo quando vi, nesta semana, o aperto de mãos dado por duas eminências da política mundial: o presidente dos EUA, Joe Biden, e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, em algum lugar daquele país, ainda livre de bombas. Segundo os bastidores da política internacional, os dois se odeiam, falam mal de um e de outro pelas costas, mas estavam ali posando para fotos, mostrando uma integração, fictícia, em prol da paz. O aperto e seus punhos de paletó sugeriam que interesses econômicos e geopolíticos motivaram a encenação. A imagem remetia a valores negativos, como nos alertou o consultor empresarial lá nos anos 1990. Porém, com outro viés.

         Para Biden, mais que a paz, ele queria se afirmar como político forte para os norte-americanos, ao contrário do que diz o candidato Donald Trump que o trata de frouxo. Netanyahu, por sua vez, quer maquiar a imagem de fascista, incapaz de enxergar a paz como valor possível e desejado. Biden quer passar a imagem de que é capaz de dobrar o brutamontes. E o brutamontes, de que é capaz de acatar bons conselhos. O encontro, que sofreu alterações depois que um míssil detonou um hospital em Gaza, só aconteceu para expor os dois propósitos. Tanto que os EUA vetaram a proposta do Brasil na ONU de cessar fogo e de abrir corredores humanitários.

         No mundo moderno, ou modernoso como às vezes se impõe, tudo é imagem, tudo é encenação. Biden quis ser o dono da proposta brasileira. Por essa razão, outro epíteto, “na guerra, a primeira vítima é a verdade”, virou um eterno clássico. Quem acompanha o bate-boca explosivo entre Hamas e Netanyahu percebe que, mais que uma troca de mísseis, o que garante a sobrevivência deles é a guerra de versões, as quais requerem doses cavalares de ceticismo. Pouca coisa é crível. Assim como a imagem do punho do paletó, todas as imagens têm suas versões fantasmas, ora puxando correntes, ora assombrando tolos, ora na versão Grande Satã.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 20.10.2023

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