sexta-feira, 29 de setembro de 2023

crônicas

E se o passado voltasse no tempo?

Cláudio Pimentel

         Seria como se estivéssemos sujeitos a participar, a todo instante, de episódios da série “Túnel do Tempo”, que nos levaram, nos anos 1960/70, a tantos e diferentes momentos belos e terríveis da história. Em que medida o fenômeno mudaria nossas vidas e o mundo? Difícil responder. Fiquei perdido numa dimensão entre o tempo e o espaço ao ver a figura cinzenta e contraída, como ave de rapina, do general da reserva Augusto Heleno dando seu depoimento à CPI que apura os Atos Golpistas de 8 de janeiro. Lembrou-me o enfurecido presidente Figueiredo ameaçando: “Quem for contra a democracia, eu prendo e arrebento”. Ele foi vetado, à época, pelo grupo que Heleno integrava no Exército. O mundo dá voltas!

         Encontrei, dia desses, em minha mini biblioteca mágica, um almanaque daqueles que tratam sobre o nada, mas são deliciosos de ler. Editado pela “Superinteressante” (2015), da antiga Editora Abril, trazia perguntas que promoveriam debates acalorados: “E se só existisse um sexo?”; “E se dinheiro desse em árvores?”; “E se a Bíblia não tivesse sido escrita?”; “E se o golpe de 1964 não tivesse acontecido?”. Você conseguiria responder? Em tempos de homofobia, Fake News, bancadas Evangélica e da Bala e ultradireita pedindo golpe, as respostas jamais seriam encontradas. O debate só alimenta o discurso ideológico, grosseiro e irracional, que nos meteram.

         Os canais JP e CNN passaram a tarde de quarta-feira exibindo os parlamentares que pediram a palavra para elogiar o velho general. A maioria lia, ora aos gritos, ora aos gaguejos e sempre com fluência ruim, textos que, se supõe, foram escritos por terceiros. Pareciam cumprir ordens. Se lhes fossem confiscados os artigos, nada diriam. Talvez latissem ou abanassem o rabo. O velho general ria com o ar de quem quisesse dizer “love, love, love!” Não faltavam mãos para apertos. Era a glória para a audiência. Na JP, à extrema-direita cativa da rede. Na CNN, àqueles que enxergam de longe um embuste. Nos outros canais, só os palavrões desferidos por ele ecoavam.

         A CPI, porém, não abrigou apenas quem enxerga o general como bom velhinho. Teve também os parlamentares que descortinaram o passado obscuro dele, integrante de grupo liderado pelo general Sylvio Frota, principal representante da linha-dura do regime militar. Ministro do presidente Geisel, ele queria sucedê-lo a todo custo. Acabou demitido. O general Figueiredo era o preferido de Golbery do Couto Silva, artífice da candidatura e dos rumos da ditadura, que já enfrentava problemas. Endurecê-la mais, seria o fim, entendia. Frota e seu grupo pensavam diferente. Os parlamentares lembraram que o ataque terrorista em 31 de abril de 1981, no RioCentro, num show pelo 1º de Maio, foi atribuído ao grupo que Heleno pertencia, o do general Frota.

         Durante quatro anos, o general Heleno integrou um governo que esqueceu de governar para ameaçar a democracia. De afrontar os brasileiros que integrassem movimentos, instituições ou entidades que prezassem o pensamento livre e progressivo. Negou a ciência. Negou a assistência. Negou os bons modos. Agiu como se estivesse iluminado não apenas pela torturante alma de Brilhante Ustra, mas também pela imperiosa alma de Sylvio Frota. Animou um governo que se contrapôs a tudo, até à lei da gravidade. Um governo que virou as costas ao mundo, tal e qual à Coreia do Norte. Ficou só. A presença de Heleno na CPI tornou a ditadura de 1964 próxima. E a articulação de um novo golpe, real.

         A resposta do almanaque à pergunta “E se o golpe de 1964 não tivesse acontecido?” foi baseada em entrevistas e pesquisas. Apesar do receio de que o Brasil se tornasse uma Cuba, como martelava a imprensa da época, o mais provável é que, se não tivesse havido a ditadura, a reforma educacional de Jango, por exemplo, teria reduzido a níveis baixíssimos o analfabetismo; e que um dos grandes responsáveis pelo inchaço das grandes cidades, o êxodo rural, não teria ocorrido com a reforma agrária, atenuando a favelização das grandes cidades. Dois quesitos que alimentam de forma direta a violência hoje. O passado é manhoso.

Cláudio Pimentel é jornalista

Tribuna da Bahia – 29.09.2023

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