sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

ponto de vista

O nazismo e a banalidade do mal
Cláudio Pimentel
         No início dos anos 1970, o nosso professor de história, no ginásio, preparava-se para encerrar a aula, quando um dos alunos pediu licença, levantou-se e, num suspiro, destabocou: “Meu pai disse que é subversivo falar mal do governo”. Eram os anos da ditadura e uma afirmação como esta, a depender de quem fosse o pai do menino, poderia causar muita dor de cabeça. Até mesmo a perda dela. O país passava pelo período mais crítico desde o golpe, em 1964, e a vigência do AI-5, assinado em 1968, tornara o ambiente mais perigoso, dando poderes de vida e de morte ao ditador de plantão, à época o general Garrastazu Médici. O motivo da advertência do coleguinha foi a comparação que o professor fizera das mortes de judeus no holocausto - tema da aula - com as prisões, torturas e mortes que ocorriam no Brasil. Passado o susto, mandou-nos ler “O Diário de Anne Frank” e encerrou a aula.
         Lembrei-me do episódio após acompanhar a repercussão da performance do ex-secretário da cultura, Roberto Alvim, como Goebbels redivivo. Pirou? Pensei, não. Havia um precedente. A performance do presidente Bolsonaro cortando cabelos, compromisso que o fez cancelar reunião com o ministro de Negócios da França, Jean-Yves Le Drian, em julho do ano passado. As imagens do corte repetiam ângulos de fotos de um corte de cabelo de Adolf Hitler. O próprio corte era igual, tipo boi-lambeu. Coincidência? Não. Planejado? Sim. Brincadeira? Talvez. Provocação? Provável. Em troca de quê? Bolsonaro é um pândego, daquele que perde o amigo, mas não perde a piada. Faz do mau gosto uma diversão pessoal. Mas tudo tem limites. Palavras como holocausto, nazismo, tortura, execução, Ustra, deveriam ficar distante de governos que almejam ações saudáveis, voltadas para o crescimento econômico, social e intelectual do país. É o que queremos? Sim. É o que temos? Não.
         E não temos porque o país está perdido nas grosserias e provocações do presidente, dos filhos e dos ministros. Repetir Goebbels, até nos trejeitos, foi uma coisa idiota. Só deixou desconfianças. Goebbels, sempre lembrado por cunhar a maldita frase “uma mentira repetida mil vezes, torna-se verdade”, é autor também de outra profética. Está no livro “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”, da filósofa Hannah Arendt. Diz ele, em 1943, quando questionado sobre vencer ou perder a guerra: “Ficaremos na história como os maiores estadistas de todos os tempos ou como seus maiores criminosos”. Não deu outra: os nazistas se tornaram os maiores criminosos da história. E defendê-los ou fazer apologia ao que fizeram são crimes. Por que copiá-los? Já não basta a associação com milícias que estão tornando o Rio num campo de concentração?
         O livro de Arendt deveria ser lido pelos brasileiros. É um tapa na razão dos negacionistas da história oficial. O Brasil é o único país que assume sem pudor a mórbida condição de tratar o mal como uma banalidade qualquer. Por isso, está na saúde, na educação, na segurança, no meio ambiente, no trato social. Na imprensa, nas instituições, nas empresas. Nas pessoas. O mal é o herói do nosso universo público, privado e social. Deveria ser o contrário: alvo de combate com todas as forças. Até do galhinho de arruda e do dente de alho. O mal não poupa ninguém. E vai se alastrando até chegar àqueles que se creem imunes a tudo. É a banalidade do mal que gera o menino da sala de aula.
O nazismo é confortável para quem sofre de desejos negados. Se alimenta dos frustrados de todas as causas; do psicopata à caça de ingênuos. O nazismo atraiu Adolf Eichmann, alguém com “dotes mentais modestos”, porque pressentiu sua fraqueza. Queria ser poderoso e, por isso, aceitou recolher judeus pela Europa e depois encaminhá-los à morte em campos de concentração. Ele não via mal nisso. Via a si. O poderoso. Em seu julgamento, porém, negou responsabilidade na morte de 6 milhões de judeus. “Cumpri ordens”. O nazismo anseia por quem não pense. E cegamente cumpra ordens. “Está vendo aquela fumacinha saindo da chaminé? É sua família”, disse o soldado da SS a um jovem judeu atrás de notícias dos pais, avós e irmãos. Isso é o Mal. Pense nisso.
Cláudio Pimentel é jornalista.
Tribuna da Bahia – 24.01.2020

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